segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Lobos e Homens


Eu é que conheço a Samardã, desde os meus onze anos. Está situada na província Transmontana, entre as serras do Mésio e do Alvão.
Na vertente da montanha que dominava a Samardã, havia um fojo - uma cerca de muro tosco de calhaus a esmo onde se expunha à voracidade do lobo uma ovelha tinhosa. O lobo, engodado pelos balidos da ovelha, vinha de longe, derreado, rente com os fraguedos, de orelha fita e focinho a farejar. Assim que dava tento da presa, arrojava-se de um pincho para o cerrado. A rês expedia os derradeiros berros fugindo e furtando as voltas ao lobo que, ao terceiro pulo, lhe cravava os dentes no pescoço, e atirava com ela escabujando sobre o espinhaço; porém, transpor de salto o muro era-lhe impossível, porque a altura interior fazia o dobro da externa. A fera provavelmente compreendia então que fora lograda; mas em vez de largar a presa, e aliviar-se da carga, para tentar mais escoteira o salto, a estúpida sentava-se sobre a ovelha e, depois de a esfolar, comia-a. Presenciei duas vezes esta carnagem em que eu - animal racional - levava vantagem ao lobo tão somente em comer a ovelha assada no forno com arroz.

Camilo Castelo Branco
http://www.youtube.com/watch?v=ECRK5oqO4rk

domingo, 18 de setembro de 2011

Sintra



Aqueles passeios a Sintra tinham sido sempre o meu regalo. Por lá andava todo o santo dia, de chapéu na mão, assobio na boca, a boa sombra, Seteais, as fontes, almoço no Lawrence (ou no Pombinha, conforme o orçamento), depois os Capuchos, as ruínas, a Pena... Cheguei mesmo a dormir uma noite, sozinho, nas ameias do Castelo dos Mouros. Foi no Verão, não há memória dum Agosto assim tão quente. A coisa mais extraordinária, nunca o hei-de esquecer, foi que o Sol se pôs no mesmo instante em que a Lua rompeu, e vinha cheia! Um espectáculo como nunca vi outro, nem sol da meia-noite, nem auroras boreais. Eram dois sóis, qual deles o maior, qual o mais vermelho, suspensos no horizonte, em lados opostos do mundo. Parecia uma alucinação ou um caso de espelhismo natural. Durante instantes tive a ilusão dum "fenómeno" ou cataclismo: o universo parava, e ficava retido entre aqueles dois bugalhos enormes de luz vermelha e baça...Depois o Sol afundou-se, e a Lua subiu, empalideceu, esfriou, fez-se uma lua de balada à Soares de Passos. Enfim, lá fiquei essa noite, e por sinal que me fartei de bater os queixos com frio, sem sobretudo, no Agosto mais quente de que rezam lendas encantadas.
E aqui vou eu agora a caminho de Sintra, sem mais nem menos(...)
Chegado a Sintra, desentorpeci as pernas andando até à vila. O que sempre me atraía ali eram sobretudo as verduras, as sombras, as fontes, a paisagem, a altitude. Postado agora na arcaria ogival do Palácio Real, olhei o alto da Pena, e quis ter asas para galgar os penhascos, roçar os cimos do arvoredo, ir poisar naquelas torres e ameias dignas do Walt Disney. Mas, com franqueza, nem asas, nem pernas. Vista cá de baixo, da vila, a Pena pareceu-me um caso de respeito, ninho de águias, rochedo mitológico, amontoado de ciclopes exasperados, de garras crispadas, a agatanhar o céu. Como é que eu pude outrora trepar aquilo a pé, depois da caminhada desde Lisboa, como cheguei a fazer? E o que é que me atraía agora lá acima, que memória, que enamorado pensamento, que secreto desejo, anseio de galgar o hiato do tempo, desgarradora saudade ou largueza de vistas? Porque era ali que a vontade me estava chamando.

José Rodrigues Miguéis
http://www.youtube.com/watch?v=ZgH2AEGbUMA

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Gente barrosã


   Nem eu sei quando nasceu no meu espírito este amor pelos povos minúsculos, pelas repúblicas em miniatura, por todos os que vivem isolados no planeta.
   As pequenas ilhas, sobretudo, fascinam-me, porque permitem observar melhor o homem entregue a si próprio, fechado sobre si mesmo e, simultaneamente, disperso no infinito, entre mar e céu - inconsciente até do labor psíquico por ele realizado perante o eterno limite.
   É, especialmente, nas gentes que vivem entre cadeias de montanhas que vamos encontrar, de novo, o homem metido em si próprio, o homem que reduziu a vida à árdua conquista do pão quotidiano e o enigma do infinito a uma simples crença, que colocou ao canto da alma como um bordão, para dele se servir nos momentos de vicissitude ou quando a morte lhe bate à porta. Tradicionalista, página viva de antropologia, a sua atitude ante o mundo de hoje dir-se-á igual à dos seus maiores perante o mundo de ontem e de todos os dias que já se perderam no cinerário do tempo. Mas não é assim. Agora e logo, neste raciocínio, naquela fala, no desenrolar das ambições e dos intentos, descobre-se a força da evolução que o vai penetrando, hoje um pouco, amanhã mais, num trabalho lento de pua furando granito.
   Às vezes, parece-nos surpreender, nessa demorada metamorfose, algo da personalidade remota de todos nós, como se antiquíssima reminiscência faiscasse, de súbito, em sombrio recanto do nosso espírito. E surge, então, como que um sentimento de pretérita fraternidade, que se projecta no presente, abrindo-se em compreensão e amor.

Ferreira de Castro
http://www.youtube.com/watch?v=q0WBMXTUn4Q

terça-feira, 6 de setembro de 2011

O lugar da casa


Uma casa que fosse um areal
de deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.

Eugénio de Andrade
http://www.youtube.com/watch?v=6fZRssq7UlM