quarta-feira, 27 de março de 2013

Dúvida


 
















O céptico sorriso da paisagem
Quando, funéreo, o sino
Avisa o mundo de que vai cerrar-se
O véu de trevas da Semana Santa!
A seiva é tanta
A borbulhar nas vinhas,
Voam com tal volúpia as andorinhas
Rente ao chão semeado,
É tão fresco, ligeiro e perfumado
O ar que se respira,
Que tem de ser mentira
O negro pesadelo anunciado.

Miguel Torga
http://www.youtube.com/watch?v=hPtwB_ph594

domingo, 24 de março de 2013

O que a vida me ensinou


Muitas vezes ia ao Campo Pequeno. Uma vez fui lá para me sentar ou para passear. Estava cheio de gente a  conversar ou a ler os jornais. Fui para um recanto mais pequeno, onde não estava ninguém. Eu gostava muito de estar a olhar para uma árvore e não estar a pensar. Não lia o jornal,  nem nada. Sentei-me no banco e estava com a mão em cima da travessa superior, com as costas da mão para cima. Não sei se isso tem algum significado. A certa altura um pardal veio pousar uns centímetros adiante da minha mão. Eu pensei como seria interessante se o pobre pardal pousasse em cima da minha mão. E o pardal realmente, daí a uns segundos, deu um salto para a minha mão. Continuei imóvel. O pardal não ficou por aí. Começou a subir-me pelo braço esquerdo, depois pousou no ombro um bocadinho, deu a volta às minhas costas, e pousou no lado direito. Mas também não ficou por aí. Deu um salto para a minha cabeça e começou a debicar na minha cabeça. Aí está um acontecimento inexplicável, em que há um pardal que vem ter comigo e eu senti-me assim relacionado com o Universo de uma maneira que não aconteceria a conversar com qualquer pessoa ou a ler o jornal. É uma coisa insignificante ou insignificável.
A vida não me ensinou nada.

António Ramos Rosa
(depoimento recolhido por Valdemar Cruz)
http://www.youtube.com/watch?v=-DpUtM9d_sA

sábado, 16 de março de 2013

Quando os lobos uivam


A serra é nossa e muito nossa. Queremo-la assim, estamos no nosso direito. Desta forma é que nos faz arranjo. Os de Lisboa querem-na coberta de pinhal...? Semeiem pinhal nos parques e jardins onde têm empedrado e relva só para vista.
Nacomba - Vai haver sangue, não haja dúvida - vai, vai! Se o governo teima em meter aqui a pata, temo-la tramada! Dr. Rigoberto - A nação é de todos. A nação tem de ser igual para todos. Se não é igual para todos, é que os dirigentes, que se chamam Estado, se tornaram uma quadrilha. Se não presta ouvido ao que eu penso e não me deixa pensar como quero, se não deixa liberdade aos meus actos, desde que não prejudiquem o vizinho, tornou-se cárcere. Não, os serranos, mil, cinco mil, dez mil, têm tanto direito a ser respeitados como os restantes senhores da comunidade. Se os sacrificam, cometem uma acção bárbara, e eles estão no direito de se levantar por todos os meios contra tal política. Louvadeus - Quando esta aldeia estiver mais adiantada, civilizada, tenha luz eléctrica, telefone, escolas dignas, hospitais, água potável (então) fale o estado em levar por diante este número do programa. Até lá, com fome, tamancos de amieiro e barbárie em toda a linha, deixem-nos o que temos. Não nos queiram ditar a vossa lei pela bala e a baioneta. Olhe que Nós também não vamos a Lisboa cobiçar os relvados, que lá há, para pastagem das nossas vacas.

Aquilino Ribeiro
http://www.youtube.com/watch?v=Vw8A0VVMHkI

sábado, 9 de março de 2013

Budapeste





Escrever sobre Budapeste  é como contar uma história de duas cidades. De um lado do rio, Buda, palaciana e real, de ruas medievais, sobre uma altiva colina, miradouro debruçado sobre o Danúbio. Do outro lado, Peste, plana e vasta, cosmopolita e de largas avenidas arborizadas, emolduradas por belos edifícios de eclética arquitectura, estende-se protegida pelo flamejante e etéreo parlamento. O Danúbio já quase azul, salpicado de blocos de gelo, une as cidades e, as pontes são como abraços, pendurados em correntes, entre as margens.
A entrada na cidade pela aristocrática estação ferroviária, de altiva fachada em ferro e vidro, é o melhor convite que a cativante Budapeste nos oferece. Depois foi o percurso curto até um delicioso hotel familiar e revivalista, onde os quartos ostentam nomes do Jazz, Blues e do cinema com as paredes plenas de imagens das primeiras décadas do passado século. Na cave, uma sala de jogo de visual vagamente clandestino e um bar de luzes ténues e difusas esperavam por nós. Em Budapeste, sentimo-nos bem, perdemo-nos propositadamente, entre praças e cafés de confortáveis sofás e tectos de estuques pintados. Os Húngaros são simpáticos, o ‘’goulash’’ saboroso, o chá doce e a cerveja convidam-nos a conversas amenas e a gargalhadas espontâneas. Os dias correm velozes e a última noite aproxima-se. Atravessamos a Praça dos Heróis, vastíssima como longa é a história da Hungria. Passamos junto às pistas de gelo, onde centenas de pessoas patinam e, eis-nos num enorme complexo de nascentes termais. Uma experiência indelével espera por nós; na noite gelada de Budapeste, a céu aberto, a água jorra a cerca de 40º centígrados e a temperatura exterior ronda os 0º. Os músculos gritam de dor, quando saímos do edifício aquecido, o choque térmico é violento, mas sorriem de prazer ao mergulhar na água quente. Depois e por mais de uma hora, sentimo-nos felizes e quentes, flutuamos entre neblinas de vapor e apenas um céu protector nos cobre. Na hora da saída, admirem-se os cépticos, não sentimos o frio gelado da noite, o corpo adormecido, resiste bem à temperatura exterior.
Rui Neves Munhoz e Tiago Costa (texto adaptado)
http://www.youtube.com/watch?v=monaXOpmH1U