domingo, 29 de dezembro de 2013

Auto da Fé


Benito       Ella es noche d´alegría;
                 ninguno está aqui soñoliento.

Fé             É noite do nascimento,
                 em que Deus mostrou seu dia.
                 É noite de grã memória,
                 noite em dia convertida,
                 escuridão consumida
                 com grã resplendor de glória:
                 no meio mais luminosa
                 que no mundo nunca viste,
                 e de escura, fria e triste,
                 a mais doce e gloriosa.
                 Oh, noite favorecida
                 de memorável coroa,
                 vista de Deus em pessoa,
                 começando humana vida!
                 dos anjos toda cercada,
                 dos elementos servida,
                 do Padre e Filho escolhida,
                 do Espírito Santo expirada!

Brás:         Que ño os entiendo, ño,
                 ñi sé que cosas habláis,
                 si más no lo aclaráis.
                 Como estava me estó.

Fé:            Haveis de crer firmemente
                 tudo quanto vos disser
                 os que salvos quereis ser
                 naquesta vida presente:
                 crede o santo nascimento,
                 ser Deus de Virgem nascido,
                 Verbo de Deus concebido
                 pera Novo Testamento
                 E que a Virgem glotiosa
                 ficou tal como nasceu;
                 e sem dor apareceu
                 a nossa flor preciosa.
                 Deus em toda perfeição,
                 homem pera padecer,
                 e tirar a Lúcifer
                 toda sua jurdição.

                 Gil Vicente
                 http://www.youtube.com/watch?v=k1iURdc181A

domingo, 22 de dezembro de 2013

O menino no sapatinho


Era uma vez o menino pequenito, tão minimozito que todos seus dedos eram mindinhos. Dito assim, fino modo, ele, quando nasceu, nem foi dado à luz mas a uma simples fresta de claridade.
De tão miserenta, a mãe se alegrou com o destamanho do rebento - assim pediria apenas os menores alimentos. A mulher, em si, deu graças: que é bom a criança nascer assim desprovida de peso que é para não chamar os maus espíritos. E suspirava, enquanto contemplava a diminuta criatura. Olhar de mãe, quem mais pode apagar as feiuras e defeitos nos viventes?
Ao menino nem se lhe ouvia o choro. Sabia-se de sua tristeza pelas lágrimas. Mas estas, de tão leves, nem lhe desciam pelo rosto. As lagriminhas subiam pelo ar e vogavam suspensas. Depois, se fixavam no teto e ali se grutavam, missangas tremeluzentes.
Pois, aconteceu o seguinte: dadas as dimensões de sua vida e não havendo berço à medida, a mãe colocou o menininho num sapato. E cujo era o esquerdo do único par, o do marido.
Até que o ano findou, esgotada a última folha do calendário. Vinda da igreja, a mãe descobriu-se do véu e anunciou que iria compor a árvore de Natal. Sem despesa nem sobrepeso.
Tirou à lenha um tosco arbusto.
Os enfeites eram tampinhas de cerveja, sobras da bebedeira do homem. Junto à árvore ela rezou com devoção de Eva antes de haver a macieira. Pediu a Deus que fosse dada ao seu menino o tamanho que lhe era devido. Só isso, mais nada. Talvez, depois, um adequado berço. Ou quem sabe, um calçado novo para o seu homem. Que aquele sapato já espreitava pelo umbigo, o buraco na frente autorizando o frio.
Na sagrada antenoite, a mulher fez como aprendera dos brancos: deixou o sapatinho na árvore para uma qualquer improbabilíssima oferta que lhe miraculasse o lar.
Acordou cedo e foi direta ao arbusto de Natal. Dentro do sapato, porém, só o vago vazio, a redonda concavidade do nada. O filho desaparecera? Não para os olhos da mãe. Que ele tinha sido levado por Jesus, rumo aos céus, onde há um mundo apto para crianças. Descida em seus joelhos, agradeceu a bondade divina.
De relance, ainda notou que lá no teto já não brilhavam as lágrimas do seu menino. Mas ela desviou o olhar, que essa é a competência de mãe: o não enxergar nunca a curva onde o escuro faz extinguir o mundo.

Mia Couto
http://www.youtube.com/watch?v=D_naXf_c6As


domingo, 15 de dezembro de 2013

Sermão do Bom Ladrão


O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao Inferno; os que não só vão, mas levam (de que eu trato) são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera, os quais, debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno. Não são só ladrões, diz o Santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título, são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades; os quais, já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem; estes roubam cidades e reinos. Os outros furtam debaixo do seu risco; estes, sem temor nem perigo. Os outros, se furtaram, são enforcados; estes furtam, e enforcam. Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em trinfo um cônsul ou ditador, por ter roubado uma província! E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes?

domingo, 8 de dezembro de 2013

Divergências profundas


Na acção governamental as dissenções são perpétuas. Assim o partido histórico propõe um imposto. Porque, não há remédio, é necessário pagar a religião, o exército, a centralização, a lista civil, a diplomacia... - Propõe um imposto.
"Caminhamos para a ruína -  exclama o Presidente do Conselho. - O défice cresce! O país está pobre!  A única maneira de nos salvarmos é o imposto que temos a honra, etc..."
Mas então o partido regenerador, que está na oposição, brame de desespero, reúne o seu centro. As faces luzem de suor, os cabelos pintados destingem-se de agonia, e cada um alarga o colarinho na atitude de um homem que vê desmoronar-se a Pátria!
- Como assim! - exclamam todos. - Mais impostos!?
E então contra o imposto escrevem-se artigos, elaboram-se discursos, tramam-se votações! Por toda a Lisboa rodam carruagens de aluguel, levando, a 300 réis por corrida, inimigos do imposto! Prepara-se o cheque ao ministério histórico... Zás! Cai o ministério histórico!
E ao outro dia, o partido regenerador, no poder, triunfante, ocupa as cadeiras de S. Bento. Esta mudança alterou tudo: os fundos desceram mais, as transacções diminuíram mais, a opinião descreu mais, a moralidade pública abateu mais - mas finalmente caiu aquele ministério desorganizador que concebera o imposto, e está tudo confiado, esperando.
Abre a sessão parlamentar. O novo ministério regenerador vai falar.
- Tem a palavra o Sr. Presidente do Conselho.
- O novo presidente: " Um ministério nefasto (apoiado, apoiado! - exclama a maioria histórica da véspera) caiu perante a reprovação do País inteiro. Porque, Senhor Presidente o País está desorganizado, é necessário restaurar o crédito. É a única maneira de nos salvarmos..."
Murmúrios. Vozes: Ouçam! Ouçam!
"... É por isso que eu peço que entre já em discussão... (atenção ávida que faz palpitar debaixo dos fraques o coração da maioria...) que entre em discussão  - o imposto que temos a honra, etc. (apoiado, apoiado!)"
Não, não! Com divergências tão profundas é impossível a conciliação dos partidos!

Eça de Queiroz
http://www.youtube.com/watch?v=_LUJVOJMRr0

domingo, 1 de dezembro de 2013

Heróis do Mar


Coimbra, 31 de Outubro de 1993
Estamos irremediavelmente perdidos. E já ninguém o ignora e cala. É um clamor uníssono que vai do Minho ao Algarve. Um dobre a finados de uma pátria sem esperança, que o poder não ouve, ou finge não ouvir, a fazer-lhe discursos e a descerrar lápides, num desprezo olímpico pelo povo que em má hora o elegeu. Um povo que já foi senhor da sua vontade e dos seus actos, mas que muitos anos de obscurantismo, de inquisição e ditadura degradaram e perverteram, e agora, de novo tiranizado, insofrido e impotente, geme. Oiço esse gemido insistente e generalizado, e fico transido. Dói-me em todos os recessos da alma acabar os dias com ele a ressoar-me nos ouvidos atentos e solidários, confrangido de apenas poder registar o desalento de uma colectividade que se deixa sistematicamente iludir, e beija agradecida a mão de quem cinicamente, nas horas eleitorais, lhe promete o paraíso e argamassa sem pejo, em cada localidade a primeira pedra de uma escola, centro de cultura ou saúde, que nunca serão realidade. E que, depois de ser mais uma vez ludibriada, barafusta, perde a cabeça, corta estradas e interrompe o trânsito, até que a bastonadas paternais, recolhe a casa pacificamente, numa indignação envergonhada e vencida.