sábado, 31 de maio de 2014
Das mais puras memórias: ou de lumes
Ontem à noite e antes de dormir,
a mais pura alegria
de um céu
no meio do sono a escorregar, solene
a emoção e a mais pura alegria
de um dia entre criança e quase grande
e era na aldeia,
acordar às seis e meia da manhã,
os olhos nas portadas de madeira, o som
que elas faziam ao abrir, as portadas
num quarto que não era o meu, o cheiro
ausente em nome
mas era um cheiro
entre o mais fresco e a luz
a começar era o calor do verão,
a mais pura alegria
um céu tão cor de sangue
que ainda hoje, ainda ontem antes de dormir,
as lágrimas me chegam como então, e de repente,
o sol como um incêndio largo
e o cheiro as cores
Mas era estar ali, de pé, e jovem,
e a morte era tão longe,
e não havia mortos nem o seu desfile,
só os vivos, os risos, o cheiro
a luz
era a vida, e o poder de escolher,
ou assim o parecia:
a cama e as cascatas frescas dos lençóis
macios como estrangeiros chegando a país novo,
ou as portadas abertas de madeira
e o incêndio do céu
Foi isto ontem à noite,
este esplendor no escuro e antes de dormir
.......
Hoje, os jornais nesta manhã sem sol
falam de coisas tão brutais
e tão acesas, como povos sem nome, sem luz
a amanhecer-lhes cor e tempos,
de mortos não por vidas que passaram,
mas por vidas cortadas a violência de ser
em cima desta terra sobre outros mortos
mal lembrados ou nem sequer lembrados
E eu penso onde ela está, onde ela cabe,
essa pura alegria recordada
que me tomou o corredor do sono,
se deitou a meu lado ontem à noite
.......
E todavia os tempos coabitam
E o mesmo corredor dá-lhes espaço
e lume
Ana Luísa Amaral
https://www.youtube.com/watch?v=DcKMl7ZCfl8
domingo, 25 de maio de 2014
O país do amor
O amor é um país para onde vou
todos os dias. Mesmo
que não pense no amor e que não ame,
ou que as nuvens fluam no vazio e o ar
fique suspenso da secura,
o amor é o meu país - que nunca deixo
e onde as rosas da memória
se tingem sempre que respiro.
O meu país de origem, e, com certeza,
o da chegada ao fim - quando a vida
se estilhaça em átomos vazios, só essa
ressurreição me torna clara.
Quando os espelhos me decidem que sou
outra, o rosto verdadeiro está no país do amor,
subindo à superfície. A casa
está cheia de lonjura e sons de bronze,
o mar está à procura e a terra deixou de respirar,
mas é no país do amor que eu sou quem sou.
A carne rebenta, o sangue corre,
a tinta do jornal torna-se pó, já ninguém fala
e nada mais existe: todos os dias
percorro este exercício de morrer, mas é o amor,
no seu país, que me reclama.
Isabel Cristina Pires
https://www.youtube.com/watch?v=xk3KMv7F-N0
domingo, 18 de maio de 2014
O regresso
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.
Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.
Manuel António Pina
https://www.youtube.com/watch?v=DJh6i-t_I1Q
domingo, 11 de maio de 2014
Relato Breve
Deixarás a casa por acabar.
Ficarão nos muros janelas por abrir
para o primeiro,
o último crepúsculo.
No ar ainda doce, encostado
à parede, o limoeiro
voltará a florir para nenhum olhar.
No jardim uma ou outra flor resiste.
Talvez alguém passe e diga para si mesmo:
Como os goivos cheiram bem!
Eugénio Andrade
https://www.youtube.com/watch?v=TYl8GRJGnBY
sábado, 3 de maio de 2014
Testamento de vgm
deixo a meus filhos versos cultos
e também prosas às centenas
(os meus dois filhos são adultos
e as minhas filhas são pequenas)
e muito amor: não deixo apenas,
tudo somado, alguns direitos,
e fui bom pai, nunca fiz cenas
e fi-los sãos e escorreitos.
e à minha neta Francisquinha,
senhora que é do seu nariz,
deixo a ternura que esta linha
desajeitadamente diz
e seja a flor desta raiz
já desgrenhada que deu frutos
e tenha sorte num país
em que o avô lidou com brutos.
aos meus irmãos, aos meus cunhados,
à primalhada, um grande abraço,
lembrando bons e maus bocados
que reforçaram sempre o laço
que nos unia a cada passo,
quer no lazer, quer no trabalho,
e quando eu for lívido e baço
sintam que assim eu inda valho.
não creio em deus, não me atingiram
seus metafísicos engodos.
no homem que sou evoluíram
peixes, macacos, algas, lodos,
celtas, judeus, romanos, godos,
mas recebi, por formação,
os sacramentos quase todos
e só me falta a extrema-unção.
" - terceira idade", digo e brinco,
sem ter poção nem amuleto
que me devolva aos trinta e cinco
e reestofe o esqueleto.
outros fariam um soneto
de hora final quando a mão treme,
eu escrevi este folheto
e assinei-o vgm.
Vasco Graça Moura
https://www.youtube.com/watch?v=q2ZHjSA8mkY
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