domingo, 29 de junho de 2014

As metamorfoses da cigarra


É difícil. Isto de começar num monturo e só parar na crista de um castanheiro, tem que se lhe diga. É preciso percorrer um longo caminho. Embrião, larva, crisálida... O calor dá no ovo. Aquece-o e amadurece-o. A casca quebra... Ah, depois é essa descida ao húmus, essa existência amorfa, nem germe, nem bicho, nem coisa configurada. Largos dias assim. Até que finalmente em cada esperança de perna nasce uma perna, e cada ânsia de claridade é premiada com dois olhos iluminados. Cresce também uma boca onde a fome a reclama, e surgem as asas que o sonho deseja...
É difícil, mas vai. Desde que haja coragem dentro de nós, tudo se consegue. Até fazer parte do coro universal. 
- Já hoje ouvi a cigarra...
- É tempo dela.
Nenhuma palavra de apreço pela dureza do caminho. Paciência. Ninguém mais ficaria a conhecer a fundura dos abismos em que se debatera. Protoplasma, lagarta, ninfa...Quase que sentia ainda no corpo as fases da transfiguração. Mas pronto, chegara! Agora era receber o calor do presente, e cantar. Cantar o milagre da anodina e conseguida ascensão.
E cantava. 
A primavera estava no fim, e o estio ia começar. As cerejas pontuavam a veiga de sorrisos vermelhos. As searas, gradas de generosidade, aloiravam. Contentes, os ramos relaxavam de vez os músculos crispados, já esquecidos das ventanias do inverno. Havia penugens de esperança em cada ninho.  Mas não era a doçura das seivas, a paz vegetal ou animal que saudava. Vencera todos os obstáculos dum árido caminho, sem a ajuda de ninguém. Por isso, nada devia aos outros, e nada lhes daria, a não ser a beleza daquele hino gratuito.
Ainda no rés-do-chão das metamorfoses, apetecera-lhe contemplar dum alto miradoiro o berço nativo. E começou a subir, a subir, a subir sempre. Depois, serenamente, olhou. Nesse momento, porém, um raio quente de sol caiu-lhe amorosamente sobre o dorso. Contraiu-se de volúpia. E, da plenitude que a empolgou, ergueu-se a voz de triunfo. Não era a vontade que a fazia vibrar. Era o corpo, possesso de contentamento, que, num espasmo total, estridentemente glorificava a própria perfeição atingida.
- Até azamboa a gente!
O senhor camponês, a reclamar. Suado e soturno, a mourejar de manhã à noite, queria silêncio à volta. Tapasse os ouvidos! Nenhuma força humana ou desumana a faria calar.

Miguel Torga
https://www.youtube.com/watch?v=XJSjm_YUxDo

domingo, 22 de junho de 2014

À chegada do verão

                                     
                                     
                                        Abriu a janela.
                                        O que sucedeu então foi
                                        noutra manhã: o galo do quintal
                                        do vizinho anunciou a chegada
                                        do verão. A luz hesitante talvez
                                        nem consiga romper a névoa.
                                        De súbito
                                        o grito do pavão rasgou o céu
                                        e, azul, pela janela
                                        entrou o mar.

                                        Eugénio de Andrade
                                        https://www.youtube.com/watch?v=Fv0CU2ewz_A

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Era uma filha

                                     
                                      Era uma filha o que chorava
                                      quem estava olhando sem olhar
                                      com um olhar húmido ainda
                                      desse teu ventre que é o mar

                                      quem com a boca não falava
                                      mas após mim há-de ficar
                                      para apostar candidamente
                                      a quem um dia perguntar

                                      por este pai que lhe cantava
                                      e a olhava com um olhar
                                      prendido a ti e ao singular
                                      olhar que tens, que é como o mar

                                      Fernando Assis Pacheco
                                      https://www.youtube.com/watch?v=9kmwY1Z3YNY

domingo, 8 de junho de 2014

Aquilo que eu não fiz


Eu não quero pagar por aquilo que eu não fiz
Não me fazem ver que a luta é pelo meu país
Eu não quero pagar depois de tudo o que dei
Não me fazem ver que fui eu que errei

Não fui eu que gastei
Mais do que era para mim
Não fui eu que tirei
Não fui eu que comi

Não fui eu que comprei
Não fui eu que escondi
Quando estavam a olhar
Não fui eu que fugi

Não é essa a razão
Para me quererem moldar
Porque eu não me escolhi
Para a fila do pão
Este barco afundou
Houve alguém que o cegou
Não fui eu que não vi

Talvez do que não sei
Talvez do que não vi 
Foi de mão para mão
Mas não passou por mim
E perdeu-se a razão
Todo o bom se feriu
Foi mesquinha a canção
Desse amor a fingir
Não me falem do fim
Se o caminho é mentir
Se quiseram entrar
Não souberam sair
Não fui eu quem falhou
Não fui eu quem cegou
Já não sabem sair

Meu sonho é de armas e mar
Minha força é navegar
Meu Norte em contraluz

Meu fado é vento que leva e conduz