domingo, 26 de outubro de 2014

Miguel Ângelo

                       
                                                Do caos humano, confuso e hostil,
                                                Sobe milagroso o teu perfil
                                                O mais claro ensinamento.

                                                O olhar procura
                                                O mais profundo fundo
                                                O mais longínquo além.
                                                O nariz sente e respira
                                                Cada exalação da vida
                                                E a boca renuncia.

                                                Sophia de Mello Breyner Andresen                        
                                                http://www.youtube.com/watch?v=Jf-spvYtP9A

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Roma


No ano de 1670, prega o Padre António Vieira, em Roma, o Sermão de Quarta-Feira de Cinzas. Na Igreja de Santo António dos Portugueses, ele pronuncia as enigmáticas palavras: "Tudo é pó..." Nenhum lugar como a Cidade Eterna para sofrer a inspiração de tal dizer, e o grande pregador não era homem para ficar indiferente ao motivo extraordinário que aos olhos se lhe apresenta. Roma impressiona-o como um imenso sepulcro, e ele detém-se a recordar a exclamação de Santo Agostinho que, vindo de África, ali pergunta: Onde estão os cônsules romanos? Que se fez dos Césares e dos Pompeus? Os Titos, os Trajanos, que é deles? Tudo é pó, tudo é cinza. O letrado português não poupa a cidade, amortalha-a bem no seu manto de poeira, atribui-lhe o destino de Babilónia, muda-a numa caveira do mundo. É muito rigor, de certo - mas aquilo que se diz à multidão tem que ter o som de mil línguas e a força de mil braços; ninguém murmura um salmo num campo coberto pela turba, mas grita e agiganta a sua verdade para que os espíritos mais turvos e os ouvidos mais distantes a possam entender. 
Mas agora que a minha linguagem dispensa a sonoridade que é dada a um pregador, encontro-me com Roma e pergunto a mim própria: Que vultos distingo entre as ruínas, que é Roma, a que foi execrada e nomeada como uma águia nas capitais mais soberbas, desde Alexandria a Palmira? A primeira visão, ao passar no Corso, é de alegria do instinto, de simpatia frívola e sobretudo de vida fácil. Nos passeios, onde há flores, onde se improvisam terraços de Verão, toda a gente conversa, bebe um copo de sumo de frutas, exibe-se com ingenuidade. O trânsito é a única coisa séria em Roma, a única coisa pelo menos que inspira cuidado; é tão desordenado quanto jovial e oportuno, as vitórias puxadas por cavalos pacientes entalam-se entre filas de automóveis que sobem a Via Nazionale. Em dois dias há familiaridade com Roma; ela parece-nos conhecida há muito tempo, desde a Estação Termini até à Via de Caracala, desde a Avenida de Victor Manuel até ao bairro Sant`Ângelo. É uma cidade pequena, íntima, duma elegância um pouco duvidosa. À noite, Roma reserva toda a sua energia eléctrica para os seus monumentos. Foca-os com projectores poderosos, sabe valorizar as suas pedras com uma espécie de arte toda teatral, e não é raro descobrirmos sob a luz duma lâmpada uma sugestão que com o clarão do sol não seríamos capazes de adivinhar; os mais grosseiros tijolos animam-se com esse esplendor lunar, e, nas proximidades do Forum, onde vagueiam rapazes solitários, assistimos à montagem dum novo efeito de luzes que incidem sobre as colunas, revelam o relevo dum arco, ressuscitam os restos do templo de Vespasiano. Julgamos ouvir os gemidos das prisões mamertinas quando um raio de claridade é experimentado sobre elas, o solo, juncado de destroços, é varrido agora por um feixe rápido de prata - parece-nos apanhar ainda a dobra duma toga ou a jónica serenidade duma colunata, ou talvez o perfil delido dum carneiro de sacrifício. Todas as ruínas estão assim pintadas, os vermelhos alicerces dumas termas ou a dança circular das colunas do templo de Vesta resplandecem com o pó luminoso vertido sobre eles.

Agustina Bessa-Luís
https://www.youtube.com/watch?v=9u1oT7QtQp4

domingo, 12 de outubro de 2014

Desejar a viagem


Partir, seguir as pisadas do pastor, é experimentar um género de panteísmo extremamente pagão e reencontrar os vestígios dos antigos deuses - deuses das encruzilhadas e da sorte, da fortuna e da embriaguez, da fecundidade e da alegria, deuses das estradas e da comunicação, da natureza e da fatalidade - e libertar-se das amarras, das limitações e das servidões do mundo moderno. O seu périplo abarca todo o planeta e vale-lhe a condenação daquilo que delimita e escraviza: o Trabalho, a Família e a Pátria, pelo menos no que diz respeito às limitações mais visíveis e identificáveis.
Enquanto nómada auto-suficiente, o viajante recusa o tempo social, colectivo e limitador, em proveito de um tempo singular construído a partir de durações subjectivas e de instantes festivos apetecidos e desejados. Associal, insociável, irrecuperável, o nómada ignora o relógio e guia-se pelo Sol e pelas estrelas, aprende com as constelações e com o movimento do astro no céu, não tem horário, mas possui um olho de animal acostumado a distinguir as alvoradas, as auroras, as trovoadas, as abertas, os crepúsculos, os eclipses, os cometas, as cintilações estelares, sabe ler as nuvens e decifrar as suas promessas, interpreta os ventos e conhece os seus hábitos. O capricho governa os seus projectos em comunhão com os ritmos da natureza. Ele e o uso que faz do mundo, nada mais importa - daí fazer parte dos banidos e dos recusados. Quando se faz à estrada, obedece a uma força que, brotando do seu ventre e dos meandros do seu inconsciente, o coloca no caminho, o impulsiona e abre-lhe o mundo como um fruto exótico, raro e dispendioso. Desde o primeiro passo, realiza o seu destino. Nos caminhos e nos trilhos, nas estepes e nos desertos, nas ruas das megalópoles ou na desolação das pampas, na onda profunda ou no ar perpassado por correntes invisíveis, o encontro com a sua sombra é inevitável - ele sabe que não tem escolha.