A minha infância é um esgoto atravancado de detritos. A minha infância tem cheiro a fumo nos cabelos e cinzas debaixo das unhas. Um cansaço granítico, uma velhice súbita nos pés. Não sei se estou dentro ou fora, se saí de ti, se entrei em ti, desconheço-te tão bem quanto te conheço. Perco-me cá dentro, entre restos, sobras, remanescências vãs, numa casa sem bússola, mas se conseguisse subir ao sótão talvez avistasse de lá a serra e a neve no cume, e reconhecia-te outra vez. Como se mantém a vista se não existe janela para me debruçar... Como me agarro ao corrimão de uma escada que não há... Como avanço pelo corredor de sustos e escuridão, se ele está a céu aberto e não tem princípio, só fim... Como caminho nesta inexistência de chão, feita de vidros, pedras trituradas e pregos - foi o que restou... Como se faz para soterrar algo que me inclui... Como me desvio para atalhos, se todas as minhas correntes sanguíneas vão ter aí... Tenho de reportar a minha infância ardida e dão-me um formulário da Protecção Civil. Tenho de preservar a memória dos meus avós, dos avós dos meus avós, e pedem-me apólices, metros quadrados e cadernetas prediais. Eu era capaz de as encontrar, senhor vereador, de certeza, na segunda gaveta da secretária do meu avô, onde ele guardava os papéis importantes. Nenhum óbito a reportar, graças a Deus, senhor vereador, e no entanto, uma multidão insepulta. Como lhe hei-de explicar isto, senhor presidente da junta, o silêncio de uma casa carbonizada. Quanto tempo demoram a regressar os pássaros que fazem ninho nos beirais desaparecidos...E os ratos que nos infernizavam as noites com a ansiedade roedora tão bem-vindos, afinal... E os cardumes de moscas que entravam por uma janela de Verão e percorriam as funduras ondulantes dos corredores... E o cheiro enjoativo a vinho da adega, sempre gélida, onde não entrava fio de luz, agora esventrada e inundada de sol intruso. Uma casa tão misteriosa e solene, tão encantadora e assustadora, tão enraizada pelo tempo, agora uma cratera sem mistério, óbvia, nua, escancarada, despudorada...
Ana Margarida de Carvalho
Couto do Mosteiro, Santa Comba Dão, 15 de Outubro de 2017
Arte de Ric Nagualero
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