sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Chão zero


A minha infância é um esgoto atravancado de detritos. A minha infância tem cheiro a fumo nos cabelos e cinzas debaixo das unhas. Um cansaço granítico, uma velhice súbita nos pés. Não sei se estou dentro ou fora, se saí de ti, se entrei em ti, desconheço-te tão bem quanto te conheço. Perco-me cá dentro, entre restos, sobras, remanescências vãs, numa casa sem bússola, mas se conseguisse subir ao sótão talvez avistasse de lá a serra e a neve no cume, e reconhecia-te outra vez. Como se mantém a vista se não existe janela para me debruçar... Como me agarro ao corrimão de uma escada que não há... Como avanço pelo corredor de sustos e escuridão, se ele está a céu aberto e não tem princípio, só fim... Como caminho nesta inexistência de chão, feita de vidros, pedras trituradas e pregos - foi o que restou... Como se faz para soterrar algo que me inclui... Como me desvio para atalhos, se todas as minhas correntes sanguíneas vão ter aí... Tenho de reportar a minha infância ardida e dão-me um formulário da Protecção Civil. Tenho de preservar a memória dos meus avós, dos avós dos meus avós, e pedem-me apólices, metros quadrados e cadernetas prediais. Eu era capaz de as encontrar, senhor vereador, de certeza, na segunda gaveta da secretária do meu avô, onde ele guardava os papéis importantes. Nenhum óbito a reportar, graças a Deus, senhor vereador, e no entanto, uma multidão insepulta. Como lhe hei-de explicar isto, senhor presidente da junta, o silêncio de uma casa carbonizada. Quanto tempo demoram a regressar os pássaros que fazem ninho nos beirais desaparecidos...E os ratos que nos infernizavam as noites com a ansiedade roedora tão bem-vindos, afinal... E os cardumes de moscas que entravam por uma janela de Verão e percorriam as funduras ondulantes dos corredores... E o cheiro enjoativo a vinho da adega, sempre gélida, onde não entrava fio de luz, agora esventrada e inundada de sol intruso. Uma casa tão misteriosa e solene, tão encantadora e assustadora, tão enraizada pelo tempo, agora uma cratera sem mistério, óbvia, nua, escancarada, despudorada...

Ana Margarida de Carvalho
Couto do Mosteiro, Santa Comba Dão, 15 de Outubro de 2017
Arte de Ric Nagualero
https://www.youtube.com/watch?v=ni9KPgFhAIw

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Ar livre

                   

                       A menina translúcida passa.
                   Vê-se a luz do sol dentro dos seus dedos.
                   Brilha em sua narina o coral do dia.

                   Leva o arco-íris em cada fio do cabelo.
                   Em sua pele, madrepérolas hesitantes
                   pintam leves alvoradas de neblina.

                   Evaporam-se-lhe os vestidos, na paisagem.
                   É apenas o vento que vai levando seu corpo pelas alamedas.

                   A cada passo, uma flor, a cada movimento, um pássaro.

                   E quando pára na ponte, as águas todas vão correndo,
                   em verdes lágrlmas para dentro dos seus olhos.

                   Cecília Meireles
                   https://www.youtube.com/watch?v=z1Yed10wjjg

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

A minha infância


A minha infância
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe

Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho

Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva

Nele a chuva acontecia
aspergindo ocres mais vivos
empapando ervas esquecidas
cantando com as telhas liquidamente
percutindo folhetas e caleiras
criando manchas tão incoerentes nas paredes
de onde podia emergir qualquer objecto

E havia a Dona Laura
senhora distinta
e sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça

O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia

A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes

Não olhes para os rapazes
que é feio.

Inês Lourenço

https://www.youtube.com/watch?v=PjIwhgj-VQY