domingo, 29 de julho de 2018

Eclipse


Pois ali está, no meio da noite, a Lua. É mesmo um lago de prata, com vagas sombras cinzentas — sombras de árvores, de barcos, de aves aquáticas... O céu está muito límpido, e é puro o brilho das estrelas. Mas em breve se produzirá o eclipse. 
E, então, pouco a pouco, o luminoso contorno vai sendo perturbado pela escuridão.  A Terra, esta nossa misteriosa morada, vai projetando sua forma naquele redondo espelho. Muito lentamente sobe a mancha negra sobre aquela cintilante claridade. É mesmo um dragão de trevas que vai calmamente bebendo aquela água tão clara; devorando, pétala por pétala, aquela flor tranquila.
E o globo da Lua, num dado momento, parece roxo, sanguíneo, como um vaso de sangue. Que singular metamorfose, e que triste símbolo! Ali vemos a Terra, melancolicamente reproduzida na apagada limpidez da Lua. Ali estamos, com estas lutas, estes males, ambições, cólera, sangue. Ali estamos projetados! E poderíamos pensar, um momento, na sombra amarga que somos. Sombra imensa. Mancha sanguínea. (Por que insistimos em ser assim?)
Ah! — mas o eclipse passa. Recupera-se a Lua, mais brilhante do que nunca. Parece até purificada.(Brilharemos um dia também com o maior brilho? Perderemos para sempre este peso de treva?) 

Cecília Meirelles
(pintura de António Bandeira)                                                                                   
https://www.youtube.com/watch?v=tLCCzTPJ0-g

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Este livro que vos deixo...

         
             Após um dia tristonho,
             de mágoas e agonias
             vem outro alegre e risonho:
             são assim todos os dias.

             Nas quadras que a gente vê,
             quase sempre o mais bonito
             está guardado pr'a quem lê
             o que lá não 'stá escrito.

             Ó! quem me dera, sozinho,
             e em quatro versos somente,
             contar ao mundo inteirinho
             a mágoa de toda a gente.

             Para não fazeres ofensas
             e teres dias felizes,   
             não digas tudo o que pensas,
             mas pensa tudo o que dizes.

             Da música a melodia
             diz, pela alma falando,
             mais do que a boca diria
             muitas horas conversando.

             António Aleixo
             (escultura de Lagoa Henriques)
             https://www.youtube.com/watch?v=ilWmtAUQ_Es

sábado, 14 de julho de 2018

A arquitetura imaginária de M. C. Escher


As arcadas, as portas, uma abóbada
inversas. Quem caminha ali procura
um maior equilíbrio, aquela fuga
para dentro de si, onde comece
este segredo que fosse a certeza
de se perder até se tornar seu
um novo espaço. Qual? Ele não sabe
porque ali noutras formas principia
o que se configura para sempre
nas linhas tão secretas de um desenho
que foi pensado apenas para ser
uma outra imagem, a que está ausente.

Fernando Guimarães
(Arte de M.C. Escher)
https://www.youtube.com/watch?v=JdgPvripL9A

domingo, 8 de julho de 2018

Carta aos meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya


Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós(...)
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória (...)
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor (...)

Jorge de Sena
(pintura de Goya)
https://www.youtube.com/watch?v=nIpOqxozO18