domingo, 30 de setembro de 2018

Um buraco de luz para Deus


Ligo o braço longe a uma estrela
A lua límpida sobe no céu
Um anel passa através de outro anel

Procuro o tempo e encontro a passagem
Procuro a morada e encontro o relento

Às vezes mesmo sem voz
Às vezes até sem palavras
Silêncio que Deus me deu
És uma forma de luz
Tornas sagrado o que existe, centelhas da verdade
Somos o barro, somos poeira
O teu vento errante nos leva

Eu sei existe em mim, mesmo no fundo de um poço
Um buraco de luz para Deus
Um nome escrito no céu

E não sei o que fazer e rezo
Rezo sem saber dizer o quê e a quem
Mas rezo
Rezo o chão e a flor, o pão e a fome,
Rezo o branco e a dor
Nas letras do teu nome
Há um buraco de luz

José Tolentino Mendonça
https://www.youtube.com/watch?v=lPg8q3LdLx8
(arte de Helena Almeida)

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Quinto Poema do Pescador


Eu não sei de oração senão perguntas
ou silêncios ou gestos ou ficar
de noite frente ao mar não de mãos juntas
mas a pescar.

Não pesco só nas águas mas nos céus
e a minha pesca é quase uma oração
porque dou graças sem saber se Deus
é sim ou não.

Manuel Alegre
(arte de Zhang Kechun)
https://www.youtube.com/watch?v=sCQpycvSF24

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

A Selva


A subida lenta, quinze dias bem puxados, de Belém ao Paraíso, impacientava Alberto, moroso em adaptar-se ao meio. 
O "Justo Chermont" ora enfiava pelos estreitos "paranás", tão ocultos nas margens que o barco dir-se-ia penetrar na própria floresta, ora despachava para o céu os rolos do seu  fumo em pleno centro do rio. E então, se os olhos se dirigiam para a frente, a saída tornava-se tão misteriosa como o fora a entrada - tudo selva, selva por toda a parte, fechando o horizonte na primeira curva do monstro líquido (...)
Muitas vezes, numa só hora, tornava-se necessário andar da margem direita para a esquerda, no centro do rio ou juntinho à terra, porque o canal tinha caprichos de serpente e era versátil como uma mulher. Onde, há um ano, a sonda marcava profundidade para a maior quilha do Mundo, já hoje se erguia uma praia, esplêndida para a desova das tartarugas no Estio. A terra inconsistente, que se greta nos barrancos, parte e cai aos milhares de toneladas, abalando a solidão com o pavoroso rumor do seu mergulho, cria todos os dias novos obstáculos à marcha dos navios. Mas nem isso, nem os grossos troncos desprendidos das margens nativas, que flutuam na corrente e amolgam ou furam as proas descuidosas, perturbavam os pilotos do Amazonas, subtis na previsão das dificuldades e com memória de prodígio (...)
Nem sempre se divisava a outra margem e, se surgia, era um simples pespontado negro, na linha do horizonte. Nas árvores mortas que arrastava, preguiçosamente, pousavam belas pernaltas, algumas adormecidas sobre uma só perna e o bico longo semioculto no colo; outras, de longas asas abertas, ensaiando um voo que nunca tinha início - um voo que era como uma saudação litúrgica ao Sol radioso dos trópicos.

Ferreira de Castro
(pintura de Manuel Lapa)
https://www.cm-oaz.pt/cultura.353/casa_museu_ferreira_de_castro.1499/casa_-_museu_ferreira_de_castro.a4142.html

sábado, 8 de setembro de 2018

Lembrança da ria de Faro


Dunas atrás da casa
gafanhotos cor de
madeira cardos cor de areia
ao fim da tarde,
barcos na água rósea
onde a cidade, em frente à casa, cai
De madeira caiada a
casa está
sobre a areia, que escurece quando
a maré devagar desce na praia