segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Formigas, ou a morte explicada às criancinhas


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Como nada há na natureza que não tenha
um sentido encoberto, ou que não seja
espelho de alguma coisa mais vasta
e mais severa -

- estas formigas rapaces e em tropel,
que cumprem ordens sem cuidar de quem as dá,
são na verdade uma recordatória
de que, por mais insecticidas que inventemos,
acabaremos os dias
debatendo-nos entre as tenebrosas peças
bucais da Grande Formiga.

A.M. Pires Cabral
Pintura de Guilherme Parente
https://www.youtube.com/watch?v=iGGF1TR3guY

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Eu gosto das palavras



Eu gosto das palavras e do canto
E dos ecos que trazem à lembrança,
Dessas canções de frança e aragança
Que são só sons que cobrem, como um manto,
O que têm que cobrir, porque, entretanto,
Já há, profissional, uma ordenança
A recolher em fichas, sem parança,
O tom, o cheiro, o muco, do seu pranto.
Que cante, e dance, e viva, e morra, e vibre,
Que se desdobre em nervos e minutos,
E seja para sempre eterno e livre
O grito que se ergueu irresoluto
Desse sítio onde o corpo se coíbe
E súbito triunfa do seu luto.



KOLYMBÍTRIA


O absoluto não é ter muitas coisas juntas, Mas
o quase nada que vibra no fim da tarde,
Quando as pedras se iluminam de dentro,
Com já saudades do sol que vai partir.
Manuel Resende
Pintura de Álvaro Lapa
https://www.youtube.com/watch?v=KoNh-EKmNW4

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Viajar! Perder países!


Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E da ânsia de o conseguir!
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Natureza morta com louvadeus


Foi o último hóspede a sentar-se
no topo da mesa, já depois do martírio.
As asas magníficas haviam-lhe sido quebradas
por algum vento. Perdera o rumo
sobre a película cintilante de água
no riacho parado. Tal como poisou
junto de nós, com o belo corpo magro
arquejante, lembrava, ainda segundo o seu nome,
um santo mártir. Enquanto meditávamos,
a morte sobreveio, e a pequena criatura,
que viera partilhar a nossa mesa,
depois de ter sido banida das águas
foi banida da terra. Alguém pegou
no volúvel alado corpo morto
abandonado sem nexo na brancura da toalha
- que maculava - 
e o atirou para qualquer arbusto raro
que o poeta ainda pôde fotografar.

Fiama Hasse Brandão
Gravura de Escher
https://www.youtube.com/watch?v=K9qCNRli1tk