quinta-feira, 27 de maio de 2021

Os meus sapatos



Sapatos, rosto secreto da minha vida interior:
Duas bocas desdentadas e hiantes,
Duas peles de animais parcialmente decompostas
A cheirar a ninhos de ratos.

De que me valem os livros
Quando em vocês é possível ler
O Evangelho da minha vida na terra
E ainda mais além, das coisas por vir?

Quero proclamar a religião
Que concebi para a vossa humildade perfeita
E a estranha igreja que estou a erigir
Tendo-vos por altar.

Ascéticos e maternais, vão persistindo:
Semelhantes a bois, a Santos, a condenados,
Com a vossa paciência calada, compondo
O meu único retrato verdadeiro.

Charles Simic (tradução: Vasco Gato)
Pintura de Van Gogh

domingo, 23 de maio de 2021

Bom dia!


A expressão Bom dia! é usada na língua comum por muitas pessoas no português europeu há muito tempo. Foi inventada por alguém um dia e a moda pegou. Saber se foi assim e como isso aconteceu e acontece é uma questão muito complicada. Aprendi isto nas aulas de linguística da Faculdade de Letras.

Acho Bom dia! lindo. É um grande verso, um grande poema. Acho que Homero não fica zangado se eu disser que acho Bom dia! tão bom ou melhor do que a Odisseia ou a Ilíada.

Bom dia! é uma oração, um poema de amor, uma epopeia.


Adília Lopes

Pintura de Monet

https://www.youtube.com/watch?v=V_CoRI1nT14

domingo, 16 de maio de 2021

As mulheres aspiram a casa


AS MULHERES ASPIRAM A CASA PARA DENTRO DOS PULMÕES

As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões

E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,

As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados

Ao peso dos pássaros que se abrigam.

 

É à janela dos filhos que as mulheres respiram

Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas

Transformam-se em escadas

 

Muitas mulheres transformam-se em paisagens

Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram

Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem

Cheias de rebentos

 

As mulheres aspiram para dentro

E geram continuamente. Transformam-se em pomares.

Elas arrumam a casa

Elas põem a mesa

Ao redor do coração.


Daniel Faria

Arte de Julião Sarmento 

https://www.youtube.com/watch?v=59KcwtUFrvY

sábado, 1 de maio de 2021

Mãe

Eu sou aquela que os vê.
E caminho pelos seus caminhos e sou a
fogueira distante.
O tempo não me apaga.
Tenho os pontos cardeais e sou a bússola nas
suas mãos,
quando eles vão sobre as águas.
Sou os mapas, a constelação, o cruzeiro do sul,
o arado, o cão,
aquela que os guarda.
Sou o regaço, as belas plumas do meu regaço,
a imensa luz de amor que cai sobre a sua
penumbra,
sobre a sua loucura.
Sou a mãe da sua vida, da sua morte.
E vou com eles, espalhando as rosas tristes,
e os meus cabelos espalham sobre os seus
cabelos as raízes brancas.
Sou aquela que escreve quando eles dormem,
sou as palavras através do sono.
E adormeço com eles,
fechando as últimas portas.

José Agostinho Baptista
Pintura de Sarah Affonso