Caldas da Felgueira
BANHOS DE PRINCESAS E LÁZAROS: TERMALISMO E ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL
Não se engane o leitor: este não é um conto de princesas e de
sapos que afinal são príncipes enclausurados em corpo de bicho à espera da
redenção por um beijo na beira do lago; tão pouco é uma evocação das moiras
encantadas que se escondem nas fontes das montanhas e dos vales, ou um episódio
da noite de São João, quando o reflexo das águas devolve o futuro a quem nelas
se olha. As princesas e os lázaros que aqui evocamos não pertencem às lendas e
narrativas de águas e encantamentos que abundam no folclore europeu.
As nossas princesas e lázaros são de carne e osso, de nervos
e pele, têm nomes humanos, vida social, existência histórica; e vão a banhos
nas termas europeias. São princesas, duquesas e cortesãs aprisionadas em
espartilhos que lhes trazem os nervos à flor da pele, procurando nas águas o
refrigério para as suas hipocondrias e reais padecimentos; elas e eles,
príncipes, duques e outras celebridades que as acompanham, buscando também no
pretexto dos banhos o momento dos encontros, o terreno dos matrimónios, das
alianças, das cumplicidades, dos negócios e até da criação literária.
Igualmente reais são os leprosos e outros intocáveis que, descamando a pele e
perdendo a integridade dos sentidos e dos órgãos, procuram nas águas a
possibilidade de atenuar as incompletudes, as dores, o ardor das chagas; ou os
paralíticos, apopléticos e reumáticos que, apoiados em bengalas ou
transportados em macas, querem nos banhos aliviar dores e recuperar alguma da
mobilidade perdida.
Entre monarcas e párias, príncipes e mendigos, clientes de
todas as castas e qualidades partem para banhos, termas, caldas, vilas de
águas, estações termais ou spas, como se têm chamado, em diferentes contextos
da Europa e do mundo, os lugares em que a fama curativa das águas e a qualidade
dos ares apelam a visitas e estadias de doentes, peregrinos, turistas, enfim,
aquistas e termalistas. Ao longo dos séculos, com a pele descamada, os nervos
inflamados, os membros paralisados, os efeitos da sífilis fazendo-se anunciar,
as articulações toldadas, a gota latejando, ou simplesmente os sentidos postos
numa estadia de intenso convívio e rituais de sociabilidade, muitos acorreram
às águas – sagradas, santas, de virtudes, minerais, mineromedicinais,
medicinais. Todos usam das mesmas águas, mas talvez não das mesmas tinas, ou
das mesmas banheiras, ou sequer das mesmas nascentes. Neste partilhar e separar
das águas se concentra, como mostrarei, a essência do termalismo europeu: água
para todos, para tudo tratar, mas a todos de modos diferentes, cada um no seu
lugar.
Cristina Bastos