domingo, 21 de agosto de 2022

Uma conversa sem palavras


No princípio era o abraço. Um abraço é uma longa conversa sem palavras. Ele foi para a maioria de nós, ao nascer, o primeiro e reconfortante embalo, mas a necessidade de um abraço acompanha a nossa existência até ao fim.
Há uma tipologia vastíssima de abraços que declina, à maneira de um silabário, aquilo que um abraço pode ser: acolhimento e despedida, congratulação e luto, reconciliação e afago, manifestação de amizade ou de paixão. Os abraços fazem parte da arquitetura íntima da existência, do seu desenho invisível, mas absolutamente presente. São plenitude consentida ao desejo de comunhão que todos trazemos e memória que revitaliza. Os abraços são um mapa para que nos reconheçamos. E isso acontece efetivamente: em abraços quotidianos e extraordinários, abraços dramáticos ou transparentes, abraços alagados de lágrimas ou em puro júbilo, abraços de próximos ou de distantes, abraços fraternos ou enamorados, abraços repetidos ou que, porventura, nem chegaram a acontecer.
O que de mais importante em nós se destina a ser dito soletra-se melhor no silêncio de um abraço, porque aí ocorre isto que é tão precioso: sem defesas, um coração coloca-se à escuta de outro coração.

José Tolentino Mendonça
Pintura de Diego Rivera

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Testamento

Vou partir de avião

E o medo das alturas misturado comigo

Faz-me tomar calmantes

E ter sonhos confusos

 

Se eu morrer

Quero que a minha filha não se esqueça de mim

Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada

E que lhe ofereçam fantasia

Mais que um horário certo

Ou uma cama bem feita

 

Dêem-lhe amor e ver

Dentro das coisas

Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes

Em vez de lhe ensinarem contas de somar

E a descascar batatas

 

Preparem minha filha para a vida

Se eu morrer de avião

E ficar despegada do meu corpo

E for átomo livre lá no céu

 

Que se lembre de mim

A minha filha

E mais tarde que diga à sua filha

Que eu voei lá no céu

E fui contentamento deslumbrado

Ao ver na sua casa as contas de somar erradas

E as batatas no saco esquecidas

E íntegras.


Ana Luísa Amaral

https://www.youtube.com/watch?v=VLtGgQjachs

Pintura de Peter Paul Rubens



sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Europa



Europa

Apontas para o rosto sarcástico do sol de Inverno

E disparas. Há tantos meses que não chove – reparaste?

É o próprio céu a desistir de ti. E mesmo assim tu disparas, só sabes disparar.

Estás enganada, Europa. Envelheceste mal e perdeste a humildade.

Não é contra o sarcasmo que disparas, não é contra o Inverno,

Nem sequer contra o insólito, contra o desespero.

Tu disparas contra a luz.

Podes atirar-nos tudo à cara, Europa: bombas, palavras, relatórios de contas.

Podes até atirar-nos à cara um deputado, uma cimeira.

Mas os teus filhos não querem gravatas. Os teus filhos querem paz.

Os teus filhos não querem que lhes dês a sopa. Os teus filhos querem trabalhar.

Há tantos meses que não chove – reparaste?

A terra está seca. Nem abraçados à terra conseguimos dormir.

Enquanto te escrevo, tu continuas a fazer contas, Europa.

Quem deve. Quem empresta. Quem paga.



Mas os teus filhos têm fome, têm sono. Os teus filhos têm medo do escuro.

Os teus filhos precisam que lhes cantes uma canção, que os vás adormecer.

Eu acreditei em ti e tu roubaste-me o futuro e o dos meus irmãos.

Se estamos calados, Europa, é apenas porque, contrários ao teu gesto,

Nós não queremos disparar.


Filipa Leal

Gravura de H. Bunting (séc. XVI)
https://www.youtube.com/watch?v=MTmo_SjR6KQ