Amanheceu uma manhã esplêndida, pura, lavada, e depois de beber uma manzanilla (infusão de camomila) e de nos despedirmos da dona da casa, empreendemos a subida de Aitzgorri. O sol dourava ao longe as alturas, e pelo carreiro pedregoso e em ziguezague ia-se-nos abrindo o peito ao ar virginal da manhã montanhesa.
Por fim, no alto, na crista, na pequena varanda da ermida da Cruz, lançávamos um olhar de águia aos vales Guipúzcoa de um lado, à planície de Álava e aos cimos de Navarra e Rioja, pelo outro. Além, ao longe, sobre os lagos de névoas, outras cristas a que outras vezes subimos.
Aqui em baixo, no campo sem árvores,estão os pastores: pastores e, se se proporciona, contrabandistas. Deles poderiam sair os caçadores, e dos caçadores os guerrilheiros. Os guerrilheiros ágeis, de pés tão ligeiros como seguros, de andar de raposa. São os que impediram a passagem de Carlos Magno em Roncesvales, os que derrotaram Roldão; são os que estiveram quase a cortar a retirada a Massena; são os que, em duas guerras no século passado, puseram em xeque os exércitos nacionais. Porquê? No fundo, por lutar. A raposa, como a cabra, puxa sempre para o monte. É a liberdade, mas a liberdade pura, primitiva, sem programa, sem bandeira, sem hino; é a liberdade do ar dos cumes; é a vida, é o livre jogo de músculos, do peito, do olhar. Quem nestas alturas não se sente guerrilheiro, ao ver a seus pés o magnífico xadrez dos vales e das montanhas?
Já que tanto vos prego sermões do meu canto de académico de Salamanca, não vos parecerá mal que alguma vez dê largas às sugestões destas livres escapadelas pelos vales e cumes da minha terra. Quem sabe se dentro deste reitor universitário engaiolado em Salamanca, se dentro deste sisudo pregador, não se agita o livre raposo caçador?
Miguel de Unamuno (1864-1936)