sexta-feira, 28 de junho de 2024

Camões lamenta-se

O Desconcerto do Mundo

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.


Soneto

Em prisões baixas fui um tempo atado,
vergonhoso castigo de meus erros;
inda agora arrojando levo os ferros
que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
que Amor não quer cordeiros, nem bezerros;
vi mágoas, vi misérias, vi desterros:
parece-me que estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo
que era o contentamento vergonhoso,
só por ver que cousa era viver ledo.

Mas minha estrela, que eu já agora entendo,
a Morte cega, e o Caso duvidoso,
me fizeram de gostos haver medo.

Luís de Camões
Retrato de Luís de Camões na prisão de Goa (1556)
Mário Viegas e Camões:

domingo, 2 de junho de 2024

Saramago no Porto



O viajante está disposto a não andar de igreja em igreja como se de tal dependesse a salvação da sua alma. Irá a São Francisco, apesar das constantes queixas que vem fazendo contra a talha barroca, que o persegue desde que entrou em Portugal. Em São Francisco rematam-se todas as pontas da imensa cerzidura de ouro lavrado que se repete em receitas, em fórmulas, em cópias de cópias. O viajante não é autoridade, vê este esplendor, que não deixa um centímetro quadrado de pedra nua, aturde-se na magnificência do espectáculo, e acredita que esta seja a melhor talha dourada que no país há. Não se lembre se alguém o afirmou, mas está pronto a jurar: em verdade, quem entrar aqui não tem mais a fazer que render-se. Mas o viajante gostaria de saber um dia que paredes são as que a talha esconde, que pedra merecedora foi condenada à permanente cegueira.
Dá a sua volta, primeiro incomodado com o sadismo verista do altar dos Santos Mártires de Marrocos, depois distraído com as bifurcações genealógicas da Árvore de Jessé, escultura amaneirada e teatral, que faz pensar num coro de ópera. Um dos ascendentes de Cristo traja mesmo calções golpeados, é uma figura paçã do século XVII. E o viajante, olhando o patriarca Jessé adormecido, encontra naturalmente ali uma representação fálica, naquele tronco de árvore que do tronco lhe cresce, até Jesus Cristo, afinal sem mácula carnal nascido. Colocado no centro da igreja, o viajante sente-se esmagado, todo ouro do mundo lhe cai em cima.
Dali seguiu na direcção das ruas principais, mas por travessas e rampas desviadas. Afinal, o Porto, para verdadeiramente honrar o nome que tem, é primeiro que tudo, este largo regaço aberto para o rio, mas que só do rio se vê, ou então, por estreitas bocas fechadas por muretes, pode o viajante debruçar-se para o ar livre e ter a ilusão de que todo o Porto é Ribeira.

José Saramago