Tomei o comboio na estação de Castanheira, depois que o Calhau deixou de me abraçar.
Foi ele que me trouxe no carro de bois de D. Estefânia, em cuja casa, como se sabe, me talharam o destino. Minha mãe veio ainda à igreja, pela madrugada, ver-me partir; mas sentindo-me tão distante como se eu fosse preso, como se eu já pertencesse a um mundo que não era o seu - mal me falou. Por seu lado, D. Estefânia disse-me brevemente que fosse na paz de Deus - e desapareceu.
Sozinhos no carro, Calhau abismava-se no grande silêncio da manhã. Apenas de vez em quando, emergindo da solidão, mas fixo ainda na radiação de tudo, dizia coisas naturais da terra e das sementes, ou perguntava de novo a que horas era o comboio.
- Às nove - respondia eu.
- Chegamos a tempo.
E outra vez se calava, de capote às orelhas, sentado na borda do carro, com as pernas suspensas. Mas logo depois murmurava de novo:
- Tens sorte. Olha eu que nunca pus os pés num comboio. Já o vi três vezes com esta. Mas nunca lá pus os pés. Tens sorte.
A névoa da madrugada desprendia-se dos campos, ia envolvendo a montanha. Dobrado de frio, o queixo nos joelhos, a saca da roupa ao lado, eu sentia-me quase feliz, mas de uma estranha felicidade inquietante. Perturbavam-me de prazer a trepidação da partida, o halo da novidade e sobretudo o apelo intrínseco e doce de todas as pequenas coisas que ficavam mais perto de mim, como o fato novo, estreado esse dia, e o farnel da merenda para comer no comboio. Fechado nestas quimeras, eu calava-me também, como se com o silêncio me defendesse de tudo o que era ameaça à minha roda. Porque tudo para mim era estranho e ameaçador, desde a montanha imóvel na enorme manhã circular até ao espectro do Calhau e dos bois, tão insólitos na sua placidez inicial, como se viessem carregando o carro, submissamente, através de longos séculos... Afinal chegámos meia hora antes do comboio. De modo que, aproveitando esse bónus de espera, Calhau e eu pusemo-nos a estudar as linhas, os vagões nos desvios, a engrenagem das agulhas.
Um homem fardado veio à plataforma dar avisos de corneta, uma inquietação nova centrou a atenção de todos. E, bruscamente, entre dois grandes penhascos, o comboio rompeu enfim como um rancor subterrâneo, alucinado de ferros e fumarada. E tive medo. Pela primeira vez estremeci de medo até aos limites da vida, não tanto, porém, da fúria do comboio, como dessa coisa insondável e enorme, tão grande para mim, que era partir.
Vergílio Ferreira
Cartaz do filme "Manhã Submersa" do realizador Lauro António baseado na obra homónima de Vergílio Ferreira