sábado, 11 de outubro de 2025

Aveiro, porque sim

Adoro Aveiro. É simples. É isto. Os meus amorosos pais estão lá, cá; eu também estou lá, cá. Grande parte do resto da família também. Impossível sair mentalmente da cidade dos anos essenciais. Não foram inventados ainda os meios de transporte para isso, para essa saída. Não é mesmo possível.
Cresci em Aveiro: infância, adolescência, juventude e etc. E desde aí não larguei o bom osso da família e da infância.
Pré-escolar: "Primeiro Passo", chamava-se. Alguns colegas daí, ainda meninos sem alfabeto, só com balbucios e desenhos, ficaram para a primária, ciclo e liceu e ainda hoje são amigos...
Uma cidade onde a ria estava e está sempre presente, uma espécie de companheira muda, cidade que se faz a pé; uma cidade cada vez mais esperta e culta. Uma cidade onde joguei basquetebol e futebol o mais seriamente possível. No Beira-Mar, basquetebol num pavilhão que já desapareceu, junto ao bairro da Gukbenkian, e futebol depois, no estádio Mário Duarte, ainda no meio do jardim da cidade, jardim para onde se ia a pé jogar ou ver o jogo como quem vai ao café e já volta...
Nos meus 17 anos, Aveiro era para mim o futebol e a matemática, agora é cada vez mais coisas. Uma cidade que está a mudar, mantendo o essencial - cultura e modernidade. Adoro Aveiro, é simples, é isto. Não é mesmo possível sair da cidade dos anos essenciais.

Gonçalo M. Tavares



NO ALFA PARA AVEIRO

Eu entrei em Santa Apolónia, ele entrou em Santarém.
Um vago “bom dia, com licença” (o meu bilhete tinha-me dado a coxia, o dele a janela) e lá se sentou, a mesinha puxada, e o smartphone pousado em cima.
Eu continuei na leitura do livro que levava. A uma dada altura oiço um murmúrio ao meu lado: ”grande jornalista!” Olho para ele, que aponta para o meu livro e repete: “grande jornalista!”
Fico sem palavras. Porque o rapaz deve andar na casa dos trinta e poucos, e o livro que leio é a recente edição das crónicas radiofónicas do Fernando Assis Pacheco, que morreu há mais de vinte anos.
Ele percebeu o meu ar, e vá de me contar a sua vidinha ... De resto, o conhecimento do Assis Pacheco vem por via familiar: os pais são da zona de Aveiro, e o Assis também tinha lá raízes e andava por lá muitas vezes, como se lembra de sempre ouvir dizer aos pais.
Vai embalado na conversa, o que é bom porque de repente, ficámos empanados no Entroncamento, e para ali estamos, parados, sem que ninguém explique o que é que se passa, como também é norma nestes casos—e uma boa conversa sempre ajuda.
Estou um pouco aflita—eu, que sou a maluquinha da pontualidade…–porque tenho trabalho marcado para as 11 horas na Gafanha da Nazaré e não sei a que horas lá vamos chegar. Mas ele também está: tinha conseguido reunir a família naquele restaurante em Aveiro, para aquele almoço, porque depois tem de regressar à Suiça, onde trabalha na cidade de Genève. Só tem mesmo aquela manhã.
Para fazer conversa digo que conheço bem Genève, a minha editora em língua francesa é de lá, por isso lá vou às vezes. Ele quer saber o nome da editora e, já agora, o meu, desculpando-se de conhecer pouca literatura portuguesa (o Assis é uma excepção…).
O Alfa não arranca, e é então que nos mandam sair e nos enfiam num regional que para em toda a parte, e estamos ambos a ver a nossa vida a andar para trás. Vai conversando e os dedos sempre a nadarem no écran do smartphone, e eu a fazer contas ao atraso que levamos até que ele telefona para um restaurante de Aveiro a fazer a marcação para o tal almoço de família. Reconheço o nome do restaurante, sorrio e digo que também lá ia às vezes, agora nem tanto, mas…
E logo ele corta a conversa e diz que é natural, o meu marido era dali, não era?, já morreu há uns anos, é certo, mas enquanto esteve vivo devíamos ir ali muito, embora eu não deva ter muito tempo livre , com mais de 80 livros escritos, é obra!
O meu ar a olhar para ele devia ser tão apalermado, que ele se riu, apontou para o smartphone e exclamou: “está a ver as novas tecnologias? já sei a sua vida toda!”
Foi então que eu entendi por onde tinham navegado os dedos dele enquanto se esperava que o Alfa chegasse ao seu destino…
“Uma grande coisa, as novas tecnologias!”, repetia.
Até que finalmente chegámos a Aveiro. Despedimo-nos, como se nos conhecêssemos desde sempre. Já eu ia a descer quando o oiço: “a minha mãe está muito contente, por eu ter vindo ao seu lado no comboio!”
Mandei beijinhos para a mãe—e lá fui à minha vida, pensando que isto era exactamente um tipo de história que o Assis Pacheco havia de ter gostado de contar.

Alice Vieira


SONETO AOS FILHOS


Toda a epopeia da família cabe aqui
um avô galego chegado a Portugal rapazinho
outro de ao pé de Aveiro que se meteu
num barco para S. Tomé a fazer cacau

de filhos seus nasci
com este pouco de inútil fantasia
nutrida em solidões nas que me vejo
nu como um bacorinho na pocilga

e como ele indefeso e porém quis
mesmo assim ser mais que o animal
no tutano dos ossos pressentido

não peço nada usai meu nome
se vos praz lembrai-me
o que for costume

mas livrai-vos do luxo e da soberba

Fernando Assis Pacheco



Casa gandaresa

Volto contigo à terra da ilusão,
mas o lar de meus pais levou-o vento
e se levou a pedra dos umbrais
o resto é esquecimento:
Procurar o amor neste deserto
onde tudo me ensina a viver só
e a água do teu nome se desfaz
em silabas de pó
é procurar a morte apenas,
o perfume daquelas
longínquas açucenas
abertas sobre o mundo como estrelas:
Despenhar no meu sono de criança
inutilmente a chuva da lembrança.

Carlos de Oliveira