sábado, 25 de outubro de 2025

Moliceiro património mundial da UNESCO?


O Barco Moliceiro é, mais do que uma embarcação tradicional, um dos principais elementos da identidade cultural da Região de Aveiro, com uma história rica e que está profundamente enraizada na tradição local.
Quem visita a Ria de Aveiro, certamente, não ficará indiferente ao humor dos seus painéis e à sua estrutura, completamente diferente dos outros barcos que aqui navegam. Conhecer a história do Barco Moliceiro e o seu processo de construção é entrar no mais íntimo da cultura aveirense.
O Barco Moliceiro é uma embarcação tradicional que apenas existe e navega na Ria de Aveiro, tendo sido criada, de raiz, pelos mestres construtores navais da região, no século XIX. Na época, a apanha do moliço na Ria de Aveiro – que servia como fertilizante dos terrenos agrícolas – era uma das atividades económicas que mais se desenvolvia e tornou-se necessário criar um barco que facilitasse este trabalho.
Foi neste contexto que os construtores navais da região construíram de raiz uma nova embarcação – a que deram de Moliceiro – que com várias adaptações na sua estrutura, facilitava o trabalho a bordo e permitia às pessoas dormirem na proa do barco – porque era frequente os trabalhadores não virem a casa durante vários dias. Além disso, o Moliceiro foi construído com um fundo pouco profundo, pois assim era garantido que o barco navegasse na Ria de Aveiro sem encalhar, uma vez que as suas águas são pouco profundas.
O sucesso da nova embarcação foi tal que diariamente a Ria de Aveiro começou a ser navegada por centenas de Barcos Moliceiros, tendo a Apanha do Moliço se tornado uma das principais atividades empregadoras das pessoas da região.
Com a evolução dos processos agrícolas, as pessoas começaram a abandonar a apanha do moliço na Ria de Aveiro e procuraram outros empregos (ou emigraram), porém o Barco Moliceiro já era um símbolo da região e, mesmo já não sendo necessário para a apanha do moliço, continuou a ser construído pelos mestres da região.
Hoje, é uma das principais atrações turísticas da Região de Aveiro. Mas há muito mais a descobrir. Não se fique pelos passeios de barco!

Este lindo barco serve para tudo (...) é o encanto da ria. Tem não sei quê de ave e de composição de teatro. Anima a paisagem(...) chega a servir de casa (...) Não conheço outro mais artístico, mais leve, mais adequado às funções que exerce e à paisagem que o circunda.  
Raúl Brandão, 1923, in “Os Pescadores"

A Arte da Carpintaria Naval do Barco Moliceiro candidatou-se a Património Mundial da UNESCO.
Após a inscrição no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, em 2022, a Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro – entidade responsável pelo processo – entregou, em março de 2023, a candidatura “Barco Moliceiro: Arte da Carpintaria Naval da Região de Aveiro” à Lista do Património Cultural Imaterial da Humanidade que Necessita de Salvaguarda Urgente – UNESCO.











AVEIRO
Campos de Aveiro
Manchas de arroz,
E a vela de um barco moliceiro
Que um pirata ali pôs.

A servir de moldura,
O velho mar cansado;
E um Céu alto e a ter fundura
Na quilha reluzente de um arado.

Miguel Torga








MOLICEIRO DESLIZANDO AO LONGO 
DAS SALINAS
(uma ria à janela)

                      Henri Matisse


Sempre abri a janela para o mar.
A ria levava-me e trazia-me a casa
ao anoitecer. A cidade passeava
                            pela avenida que ondulava de gente                            
em gente, mas a laguna era a cidade
branca com casinhotas e trilhos no meio
do nada: a cidade que eu queria ser quando
queria ser moliceiro e amarelo pintado,
petisco de fogareiro, nome na madeira
a caminho da barra. Vivi perto de mim 
nas avenidas do mar. Fui espuma de uma onda
que rebentou em letras e remo contra e a favor
do vento. Ainda hoje abro as janelas do mar.
Ainda me escondo no branco fundo das salinas,
mas o marulhar das águas traz à tona
palavras que sobem sem mim, e eu só
uma mão ao leme à procura do norte para
me perder nos seus cristais docemente salgados.

Rosa Alice Branco





sábado, 11 de outubro de 2025

Aveiro, porque sim

Adoro Aveiro. É simples. É isto. Os meus amorosos pais estão lá, cá; eu também estou lá, cá. Grande parte do resto da família também. Impossível sair mentalmente da cidade dos anos essenciais. Não foram inventados ainda os meios de transporte para isso, para essa saída. Não é mesmo possível.
Cresci em Aveiro: infância, adolescência, juventude e etc. E desde aí não larguei o bom osso da família e da infância.
Pré-escolar: "Primeiro Passo", chamava-se. Alguns colegas daí, ainda meninos sem alfabeto, só com balbucios e desenhos, ficaram para a primária, ciclo e liceu e ainda hoje são amigos...
Uma cidade onde a ria estava e está sempre presente, uma espécie de companheira muda, cidade que se faz a pé; uma cidade cada vez mais esperta e culta. Uma cidade onde joguei basquetebol e futebol o mais seriamente possível. No Beira-Mar, basquetebol num pavilhão que já desapareceu, junto ao bairro da Gukbenkian, e futebol depois, no estádio Mário Duarte, ainda no meio do jardim da cidade, jardim para onde se ia a pé jogar ou ver o jogo como quem vai ao café e já volta...
Nos meus 17 anos, Aveiro era para mim o futebol e a matemática, agora é cada vez mais coisas. Uma cidade que está a mudar, mantendo o essencial - cultura e modernidade. Adoro Aveiro, é simples, é isto. Não é mesmo possível sair da cidade dos anos essenciais.

Gonçalo M. Tavares



NO ALFA PARA AVEIRO

Eu entrei em Santa Apolónia, ele entrou em Santarém.
Um vago “bom dia, com licença” (o meu bilhete tinha-me dado a coxia, o dele a janela) e lá se sentou, a mesinha puxada, e o smartphone pousado em cima.
Eu continuei na leitura do livro que levava. A uma dada altura oiço um murmúrio ao meu lado: ”grande jornalista!” Olho para ele, que aponta para o meu livro e repete: “grande jornalista!”
Fico sem palavras. Porque o rapaz deve andar na casa dos trinta e poucos, e o livro que leio é a recente edição das crónicas radiofónicas do Fernando Assis Pacheco, que morreu há mais de vinte anos.
Ele percebeu o meu ar, e vá de me contar a sua vidinha ... De resto, o conhecimento do Assis Pacheco vem por via familiar: os pais são da zona de Aveiro, e o Assis também tinha lá raízes e andava por lá muitas vezes, como se lembra de sempre ouvir dizer aos pais.
Vai embalado na conversa, o que é bom porque de repente, ficámos empanados no Entroncamento, e para ali estamos, parados, sem que ninguém explique o que é que se passa, como também é norma nestes casos—e uma boa conversa sempre ajuda.
Estou um pouco aflita—eu, que sou a maluquinha da pontualidade…–porque tenho trabalho marcado para as 11 horas na Gafanha da Nazaré e não sei a que horas lá vamos chegar. Mas ele também está: tinha conseguido reunir a família naquele restaurante em Aveiro, para aquele almoço, porque depois tem de regressar à Suiça, onde trabalha na cidade de Genève. Só tem mesmo aquela manhã.
Para fazer conversa digo que conheço bem Genève, a minha editora em língua francesa é de lá, por isso lá vou às vezes. Ele quer saber o nome da editora e, já agora, o meu, desculpando-se de conhecer pouca literatura portuguesa (o Assis é uma excepção…).
O Alfa não arranca, e é então que nos mandam sair e nos enfiam num regional que para em toda a parte, e estamos ambos a ver a nossa vida a andar para trás. Vai conversando e os dedos sempre a nadarem no écran do smartphone, e eu a fazer contas ao atraso que levamos até que ele telefona para um restaurante de Aveiro a fazer a marcação para o tal almoço de família. Reconheço o nome do restaurante, sorrio e digo que também lá ia às vezes, agora nem tanto, mas…
E logo ele corta a conversa e diz que é natural, o meu marido era dali, não era?, já morreu há uns anos, é certo, mas enquanto esteve vivo devíamos ir ali muito, embora eu não deva ter muito tempo livre , com mais de 80 livros escritos, é obra!
O meu ar a olhar para ele devia ser tão apalermado, que ele se riu, apontou para o smartphone e exclamou: “está a ver as novas tecnologias? já sei a sua vida toda!”
Foi então que eu entendi por onde tinham navegado os dedos dele enquanto se esperava que o Alfa chegasse ao seu destino…
“Uma grande coisa, as novas tecnologias!”, repetia.
Até que finalmente chegámos a Aveiro. Despedimo-nos, como se nos conhecêssemos desde sempre. Já eu ia a descer quando o oiço: “a minha mãe está muito contente, por eu ter vindo ao seu lado no comboio!”
Mandei beijinhos para a mãe—e lá fui à minha vida, pensando que isto era exactamente um tipo de história que o Assis Pacheco havia de ter gostado de contar.

Alice Vieira


SONETO AOS FILHOS


Toda a epopeia da família cabe aqui
um avô galego chegado a Portugal rapazinho
outro de ao pé de Aveiro que se meteu
num barco para S. Tomé a fazer cacau

de filhos seus nasci
com este pouco de inútil fantasia
nutrida em solidões nas que me vejo
nu como um bacorinho na pocilga

e como ele indefeso e porém quis
mesmo assim ser mais que o animal
no tutano dos ossos pressentido

não peço nada usai meu nome
se vos praz lembrai-me
o que for costume

mas livrai-vos do luxo e da soberba

Fernando Assis Pacheco



Casa gandaresa

Volto contigo à terra da ilusão,
mas o lar de meus pais levou-o vento
e se levou a pedra dos umbrais
o resto é esquecimento:
Procurar o amor neste deserto
onde tudo me ensina a viver só
e a água do teu nome se desfaz
em silabas de pó
é procurar a morte apenas,
o perfume daquelas
longínquas açucenas
abertas sobre o mundo como estrelas:
Despenhar no meu sono de criança
inutilmente a chuva da lembrança.

Carlos de Oliveira