sábado, 29 de janeiro de 2011

Milagrário Pessoal


Mitologias diversas, um pouco por todo o mundo, referem a existência de uma língua dos pássaros. o sangue do dragão,por exemplo, daria a quem o bebesse o poder de compreender as aves. Siegfried, o herói da ópera homónima de Richard Wagner, mata o dragão Fafnir, que é, a propósito, o nome do meu gato, e ao beber o seu sangue, por descuido, realço, não por um vil capricho gastronómico, acha-se de súbito capaz de compreender as aves da floresta. Salomão, segundo o Talmude, teria alcançado a sabedoria por dominar a língua dos pássaros. Os sufistas acreditam que os anjos comunicam entre si no alado idioma das aves. O poeta persa, de formação sufista, Farid ud-Din Attar escreveu uma famosa composição mística em 4647 versos, A Conferência dos Pássaros, de que eu vi, há muitos anos, em Lisboa, uma adaptação para teatro, da autoria de Peter Brook. Também Demócrito, Esopo ou Anaximandro palestravam com a passarada. O aimará, falado hoje por mais de dois milhões de pessoas, no Peru, na Bolívia, no Chile e na Argentina, apelidada de "língua de Adão", devido à sua beleza, possui um número imenso de palavras que resultam de onomatopeias, entre as quais estão tentativas de reproduzir o canto das aves. A própria palavra Chile seria, segundo alguns linguistas, uma dessas onomatopeias. Por fim, convém recordar a língua verde, ou língua dos pássaros, utilizada pelos alquimistas, e considerada um idioma perfeito, o único no qual seria possível expressar os mistérios mais profundos. Em alguns países europeus, durante o Renascimento, prosperaram diversas línguas assobiadas, que se acreditava possuírem propriedades mágicas, e que teriam parentesco com o idioma secreto dos alquimistas.

José Eduardo Agualusa
http://www.youtube.com/watch?v=ht5qqE_e1UE&feature=related

domingo, 23 de janeiro de 2011

Avé Aveiro


A mais antiga memória que guardo de ti é da ria a transbordar por praças e vielas, nas marés vivas. Sob os lampiões dos Arcos, Rua dos Mercadores abaixo, vogavam bateiras conduzindo os teus íncolas (ia a dizer os teus doges) às soleiras das portas. E eu batia palmas de menino com brinquedo, na janela da avó. Casa escura, com mofo a rato, olhares do José Estêvão no louceiro antigo, um opúsculo do Marques Gomes a dizer-me que um tio de antanho fora decapitado pelo D. Miguel...
Cá fora, os teus ares lavados e tranquilos, escalas tocadas ao piano dos suplícios prendados, uma passagem por baixo do andor de Santa Clara para cortar o freio da língua, luta pelas cavacas de S. Gonçalinho, musicatas nos coretos - e pouco mais...
Vamos crescendo, os dois, já sem laranjas roubadas na Rua do Gravito e sem aventuras nocturnas pelos arrabaldes - e descubro a beleza com que te despedes (despes) do Sol, perco-me em versos pelos carreiros das marinhas, levo a pasta da namorada à Estação, invento um jornalzinho de estudantes... Aprendo a respeitar professores como João Joaquim Pires, José Pereira Tavares, Francisco de Assis Maia, George Agostinho da Silva, António Salgado Júnior, guardo um profundo desprezo por outros, peço dez tostões à minha mãe para comprar O Diabo, lanço uma cervantina burricada pelo teu centro, compenso o José Estêvão ensinando-lhe (junto às grades da estátua) o canto em coro da Internacional - conspiro adolescentemente...

Mário Sacramento
http://www.youtube.com/watch?v=0A19S1gGnrM&feature=related

sábado, 15 de janeiro de 2011

Que me quereis, perpétuas saudades?


Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança ainda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais,
E, se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que mostrais,
Nem todos para um gosto são iguais,
Nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado,
Que quase é outra coisa; porque os dias
Têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias
Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
Que do contentamento são espias.

Luís de Camões
http://il.youtube.com/watch?v=0N9m8EyDz3U&feature=related

domingo, 9 de janeiro de 2011

Perfil


Não. Não tenho limites.
Quero de tudo.
Tudo.
O ramo que sacudido
Fica varejado.
Já nascido em pecado,
Todos os meus pecados são mortais.
Todos são naturais
À minha condição,
Que quando, por excepção,
Os não pratico
É que me mortifico.
Alma perdida
Antes de se perder,
Sou uma fome incontida
De viver.
E o que redime a vida
É ela não caber
Em nenhuma medida.

Miguel Torga
http://www.youtube.com/watch?v=PJTu5KM3UG4