Reconheceu a voz da Maria. A Maria , pois, a Mana. Era a Mana a segredar-lhe que fosse já ouvir o rádio, ao rádio já, imediatamente, a tropa estava na rua, era a Revolução. A Revolução caraças. Ela não sabia pormenores, estava a falar duma cabina, tinha que desligar e desligou(...)
Estávamos desconfiados, pois a cidade apresentava-se numa aridez de morte. Apareceu-nos sob um céu de cinza branca, secreta e despovoada, e, ao alvorecer, essa cinza, essa poalha, começou a ganhar reflexos metálicos. Vimos as luzes dos candeeiros públicos reduzidas a uma palidez gelada e autocarros sem ninguém(...)
Porém, à medida que o dia se foi aproximando a névoa derramou-se por dentro, contudo retendo a luz. E começaram a despontar perfis humanos a cada esquina, imóveis, esboços apenas, mas logo nos apercebemos de que eram vultos armados, militares de G-3 engatilhada, postados em rigor de conspiração; e descobrimos também, nalgumas clareiras ou abertas que depois se revelariam ser cruzamentos, recantos e terrenos vagos, descobrimos, não era pesadelo, vultos de enormes mostrengos adormecidos. Adormecidos, não: em sonolência aparente. Isso, em sonolência calculada, fingida, pois todos eles segredavam mensagens, alô Charlie, alô Óscar, alô Charlie Oito, e todos vibravam numa maquinação contida.
Agora já os reconhecíamos na sua exacta configuração: eram carros blindados, máquinas de guerra metódicas e impiedosas.
Indiferentes, os monstros sussurrantes distendiam lentas e poderosas antenas de aço à procura de orientação. Estavam alí para fazer frente ao dia, e já se arrastavam, já avançavam, de canhão levantado, a sondar e a abrir caminho. Deslocavam-se num debitar de mensagens misteriosas, alô Charlie, alô Óscar, alô Maior de Lima Cinco, e esses apelos eram a bússola, o traçado que os guiava através da madrugada. Assim estávamos, em assombro e inquietação, quando num rasgão súbito o céu se iluminou por inteiro e foi dia.
A cidade apareceu ocupada e radiosa. Deparámos com colunas militares inundadas de sol; e povo logo a seguir, muito povo que não nos cabia nos olhos, levas de gente saída do branco das trevas, de cinquenta anos de morte e humilhação, correndo sem saber exactamente para onde mas decerto para a
LIBERDADE!
Liberdade, Liberdade, gritava-se em todas as bocas, aquilo crescia, espalhava-se num clamor de alegria cega, imparável, quase doloroso, finalmente a Liberdade!
José Cardoso Pires
http://www.youtube.com/watch?v=hfKU5pA-CRI
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