domingo, 26 de junho de 2011

As ilhas


As ilhas parecem-me sempre umas saias de mulher a boiar na água, bordadas de rochedos e vegetação. É uma coisa tola de se pensar, mas são lugares femininos que podiam ter por baixo pernas bonitas, tonificadas, a porem tudo a navegar. Lugares robustos, corajosos, capazes de fazer vida longe de tudo, deitados à solidão como se quisessem ficar sossegados, sem ninguém que os chateie. As ilhas parecem-me sempre saias de mulheres deitadas à água, e os seus habitantes são como meninos trepando pelas mães acima, segurando-se como só pelas mães nos sentimos seguros(...)
Não pensem que levaria as ilhas para a beirinha do continente, nada disso. Se lhes pudesse pegar, ia pô-las sempre para diante, ao centro do mar, para serem ainda mais mágicas e ficarem ali a sonhar terem mesmo cabeça e pernas e se levantarem como senhoras tremendas, um dia, em surpresa.
Era lindo que as ilhas um dia se levantassem de pernas longas e deitassem cabeça, abrissem olhos e vissem a imensidão. O que nos diriam, ao reparar nas suas saias, por tanta gente a rabiar?
Lembro-me dos girinos que rabiavam nas poças de água do nosso quintal. Guardava-os numa pedra escavada onde nasciam umas ervas molhadas e os via nadar. Era uma maravilha ver como passavam de uma colher mole para um sapinho pequeno que se punha a saltar e me fugia da pedra escavada que me parecia um lugar tão arranjadinho para se viver (...) De modo a nunca mais me fugirem, pensava eu, havia de viver numa ilha pequena para onde tivessem de voltar quando quisessem pôr o pé em terra segura. Imaginava-me no cimo de uma pedra no meio do mar, e os sapinhos indo a banhos e voltando para me fazerem companhia.

valter hugo mãe
http://www.youtube.com/watch?v=YEftoCmhojE

sábado, 18 de junho de 2011

Soneto


Força é pois ir buscar outro caminho!
Lançar o arco de outra nova ponte
Por onde a alma passe - e um alto monte
Aonde se abra à luz o nosso ninho.

Se nos negam aqui o pão e o vinho,
Avante! é largo, imenso, esse horizonte...
Não, não se fecha o Mundo! e além, defronte,
E em toda a parte, há luz, vida e carinho!

Avante! os mortos ficarão sepultos...
Mas os vivos que sigam, sacudindo
Como o pó da estrada os velhos cultos!

Doce e brando era o seio de Jesus...
Que importa? havemos de passar, seguindo,
Se além do seio dele houver mais luz!

Antero de Quental
 http://www.youtube.com/watch?v=QqecepvxVrc&feature=related

sábado, 11 de junho de 2011

A cidade de Ulisses


   Caminhei no passeio, à beira rio, onde uma bicicleta rodava devagar sobre o poema "o Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia". As rodas giravam, no chão alcatroado, sobre uma palavra e outra, primeiro devagar e depois cada vez mais depressa, eu ouvia o som da roda girando sobre as palavras ainda legíveis, depois as letras começariam a deslizar e a confundir-se, até se converterem num borrão indistinto.
   A escrita como imagem, o legível e o ilegível como verso e reverso de uma imagem num espelho, as palavras reflectidas ou projectadas sobre a água,
   o asfalto do cais transformando-se em água, as palavras transformando-se em rio, as palavras "Pelo Tejo vai-se para o Mundo" ondulando sobre um rio, depois sem transição correndo sobre o mar, porque agora a água ondula, cavada, torna-se de um azul profundo, enquanto as letras brancas escurecem até ficarem negras, começam a desfazer-se na água e deixam de ser legíveis.

   Tinha já prontas várias telas, trabalhava nas últimas duas.
   Do projecto inicial ficariam apenas vestígios, no nome da exposição ("A cidade de Ulisses, Exposição de Paulo Vaz, a partir de um projecto de Cecília Branco"), e também o mote em que tínhamos pensado anos atrás:
   "Os turistas fogem em geral de si mesmos e procuram, obviamente, as cidades reais. Os viajantes vão à procura de si, noutros lugares e preferem as cidades imaginadas. Com sorte conseguem encontrá-las. Ao menos uma vez na vida."

Teolinda Gersão