sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Viagens na minha terra


Às vezes passo horas inteiras
Olhos fixos nestas braseiras,
Sonhando o tempo que lá vai;
E jornadeio em fantasia
Essas jornadas que eu fazia
Ao velho Douro, mais meu Pai.

Que pitoresca era a jornada!
Logo, ao subir da madrugada,
Prontos os dois para partir:
- Adeus! - adeus é curta a ausência,
Adeus! - rodava a diligência
Com campainhas a tinir!

E, dia e noite, aurora a aurora,
Por essa doida terra fora,
Cheia de Cor, de Luz, de Som,
Habituado à minha alcova
Em tudo eu via coisa nova,
Que bom era, meu Deus! que bom!

E a mala-posta ia indo, ia indo,
O luar, cada vez mais lindo,
Caía em lágrimas - e, enfim,
Tão pontual às onze e meia,
Entrava, soberba, na aldeia
Cheia de guizos, tlim, tlim, tlim!

Lá vejo ainda a nossa Casa
Toda de lume, cor de brasa,
Altiva, entre árvores, tão só!
Lá se abrem os portões gradeados,
Lá vêm com velas os criados,
Lá vem sorrindo a minha Avó.

E então, Jesus! quantos abraços!
Qu' é dos teus olhos, dos teus braços,
Valha-me Deus! como ele vem!
E admirada, com as mãos juntas,
Toda me enchia de perguntas,
Como se eu viesse de Belém!

António Nobre
http://www.youtube.com/watch?v=4BHdvDYyCVA

domingo, 18 de dezembro de 2011

O Guardador de Rebanhos


Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas(...)

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as(...)

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

Fernando Pessoa
http://www.youtube.com/watch?v=gWI1gs0dJYk

domingo, 11 de dezembro de 2011

O meu afilhado grande


Sou padrinho do meu sobrinho mais velho, o Hugo, que vai fazer 22 anos e é a prova andante e falante de que estou velho.
O meu afilhado grande está na faculdade, namora e conduz, vota, decide cada coisa na sua vida. Claro que, por maior que seja e mais barba o aflija, nós temos dele uma eterna versão pequena no coração, uma versão quase bebé que nos impele para pensarmos que é ainda o nosso menino desprotegido por quem temos de pensar, por quem temos de decidir.
Até certo ponto, ia ser tão bom que pudéssemos ainda mandar nele, para o obrigarmos a vir aos nossos jantares quando quiséssemos, para o obrigarmos a estar sempre presente para cura das nossas mais absolutas saudades, para o vermos sempre crescer, como crescer mais, porque continuamente nos maravilham as crianças da nossa família. E isto sou eu, tio casmurro, a acriançar por defeito o meu afilhado grande, mais alto do que eu, que já está na faculdade, namora e vota e decide cada coisa na sua vida a autonomizar-se mais e mais da nossa. Oh, destino cruel, porque se autonomizam de nós os nossos meninos.
Tenho muito orgulho no meu afilhado grande. Tenho orgulho que seja também ele um coração amanteigado que guardará algures a impressão dos abraços, aquele sorriso muito entregue, a malandrice das palavras feias dos quatro ou cinco anos. Algures fica esse reduto simples de sensibilidade, que nos enternecia tanto quanto nos fazia rir.

Walter Hugo Mãe
http://www.youtube.com/watch?v=XsgZZ2-D6g8&feature=related

domingo, 4 de dezembro de 2011

Estória para a Rita


Foi quando lhe ocorreu: sua filha só podia ser salva por uma história! E logo ali lhe inventou uma, assim:
Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa.
Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário de todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:
- Pai!
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez.
Chegado a este ponto, o pai perdeu voz e se calou. A história tinha perdido fio e meada dentro da sua cabeça. Ou seria o frio da água já cobrindo os pés dele, as pernas de sua filha? E ele em desespero:
- Agora, é que nunca!
A menina, nesse repente, se ergueu  e avançou por dentro das ondas. O pai a seguiu, temedroso. Viu a filha apontar o mar. Então ele vislumbrou, em toda extensão do oceano, uma fenda profunda. O pai se espantou com aquela inesperada fractura, espelho fantástico da história que ele acabara de inventar. Um medo fundo lhe estranhou as entranhas. Seria naquele abismo que eles ambos se escoariam?
- Filha, venha para trás. Se atrase, filha, por favor...
Ao invés de recuar a menina se adentrou mais no mar. Depois parou e passou a mão pela água. A ferida líquida se fechou, instantânea. e o mar se refez, um. A menina voltou atrás, pegou na mão do pai e o conduziu de rumo a casa. No cimo a lua se recompunha.
- Viu, pai? Eu acabei a sua história!
E os dois, iluaminados, se extinguiram no quarto de onde nunca haviam saído.

Mia Couto
http://www.youtube.com/watch?v=t6oWo0uGDDI