O que seria a Espanha para mim aos 10 anos? Um país que inicialmente se resumia a uma terra chamada Galícia, povoada de lendas e seres inquietos, dispostos a partir em busca de novos territórios. Habitantes, no entanto, movidos pelo instinto de volta, alimentados pelo fervor da saudade. Tendo como desculpa a origem celta, indomáveis desbravadores do imaginário.
Galícia recebeu-me ao longo de dois anos. Uma travessia cumprida através do meu crescimento físico, das descobertas incessantes, das mudanças sazonais, da conquista de duas línguas aprendidas simultaneamente, o galego, com paladar montanhês, que se fundiu um dia com o português, e o castelhano, altivo e descampado. Ambas as línguas impregnaram-me a sensibilidade para o viver linguístico de outros povos(...)
A partir de agosto, com as festas de verão, a vida se intensificava. A cada domingo havia que se deslocar para a aldeia cujo calendário celebrava o seu santo, o padroeiro do local. A protetora de Borela era Nossa Senhora de "Dolores"; cuja comemoração atraía amigos e curiosos. A festa começava com o leilão em que as famílias disputavam o privilégio de carregar sobre os ombros o andor com a santa em destaque. Após a missa, a praxe era a reunião no átrio, quando se dançava ao som dos gaiteiros contratados para esta finalidade.
As festas, quase medievais, pertencentes à comunidade, enfeitavam-se com flores, guirlandas, bandeiras, e havia fogos de artifício. Também leilões, feiras, exibições, comidas típicas, sem falar nas gaitas de foles.
Chamada de "a brasileira", eu participava intensamente dos festejos. Lidava com o tesouro das lavouras galegas, com as práticas camponesas, intuindo que aquele povo, condenado ao pungente esforço de arrancar da terra milho, batata, nabiças, também sabia rir, contar histórias, fruir o tempo, conquistar a América. E ainda amava as vacas, os porcos louros, gigantes como Teseu. Alguns destes suínos atingindo a marca de trezentos quilos de carne e gordura. Tal circunstância não lhes prejudicando a elegância, quando seguiam em direção ao rio. Pois, ao contrário do que se acreditava, tinham índole limpa, amavam a água. Banhavam-se longamente à beira do rio, fazendo companhia às lavadeiras(...)
Era comum sentar-me no final da tarde, ao lado dos velhos à beira da morte, cobrando-lhes histórias que podiam ser de um bisavô, vizinho, bandoleiro, do repertório da guerra civil.
E, enquanto eles davam início a uma narrativa sem tempo certo para encerrar-se, fui aprendendo que só saberia narrá-las no futuro, e com relativa fidelidade, se me convertesse na escritora que, a pretexto de falar de mim, estivesse, de verdade falando da coletividade, que é a única narrativa que merece subsistir.
Nélida Piñon
http://www.youtube.com/watch?v=BoE7JoFNdTo&feature=related
Que coincidência! "Coração Andarilho" foi o primeiro livro que li este ano. Não tinha lido nada da Nélida Piñon e apreciei a sua prosa.
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