Estou a lembrar-me - e com que sorriso de passado satisfeito! - daquela manhã de Março em que entrei no fiorde de Oslo, lá para trás, na névoa confusa dos meus 25 anos. Um companheiro de camarote que atravessara o Mar da Mancha e o Mar do Norte a rezar sôfrego durante horas e horas, com temor que o navio naufragasse em virtude da minha presença sacrílega de existir, veio acordar-me num alvoroço de gritos açodados: "Chegámos! Venha ver o fiorde! Venha ver o fiorde!" O fiorde, hem? Todos sabem o que esta palavra pesa de sabor mágico na alma dos portugueses - com música de Grieg. Pois tive a coragem de resistir ao encanto e voltar-me para o outro lado, no beliche ainda quente dos fantasmas da noite. E só decorrida meia hora, indiferente, barba feita, sem espreitar uma única vez pela vigia, condescendi em surgir na coberta para que as pedras do fiorde me contemplassem.
Desta maneira desembarquei em Oslo com a naturalidade de quem conhecia a cidade desde a fundação, apagado de propósito na turbamulta da Karl Johans Gate e pronto a aplicar à risca os métodos de viajar da minha lavra, juntamente com os conselhos herdados de meu pai e mestre de vida. Se bem me recordo, o meu primeiro acto em solo norueguês consistiu em penetrar na escada dum salão de fotografia para esmiuçar com atenção a beleza das mulheres... Para me lançar em seguida à procura do que chamo, com certa pompa de jeito metafísico, o segredo da cidade.
Não descobri o de Oslo, evidentemente. Como, anos depois, por mais que esgravatasse com os olhos, não desvendei o de Madrid que palmilhei de sol a sol, preso a este monólogo de desconsolo: "Sim... É uma cidade de beleza evidente. Cartazes de touros, avenidas amplas, edifícios monumentais, Museu do Prado, desenhos de Goya, cafés, esplanadas, gente em voz alta, bocas de ruído... Mas onde se esconderá o segredo último deste aglomerado de casa e gritos que não entendo? Em que urtigas na sombra de que pátio?... Em que nota de viola oculta?... Em que fundura de coração a bater?"
José Gomes Ferreira