domingo, 28 de abril de 2013

Família


A toalha de mesa era nova e só se usava nesses almoços ao domingo. Havia uma garrafa de laranjada de vidro grosso ao centro da mesa, ao lado do vinho.
Nesses dias, não faltava sol no quintal. Agora, parece-me que eram sempre domingos de uma primavera em que já se imaginava o verão. E as galinhas debatiam um assunto calmo na capoeira, as coelhas ameigavam os filhos na coelheira, os pombos atiravam-se em voos desde o pombal. A claridade desse tempo entrava pela janela e pousava sobre a mesa posta, a melhor terrina com canja, os melhores copos, os guardanapos dos dias de festa. A televisão a cores brilhava. Estava ligada e não importa o que estivesse a dar. Eu tinha entre seis e quinze anos (1980-1987).
Depois, chegou uma altura em que essa toalha de mesa, já mais desbotada, começou a ser usada nas refeições dos dias de semana. Lavada muitas vezes, tornou-se mais suave ao toque. Ganhou nódoas que já não saíam e, um dia, tornou-se demasiado velha até para esse uso. Então, a minha mãe rasgou-a e transformou-a num esfregão. Agora, até esse dia é remoto. Até o dia em que a minha mãe decidiu pôr o esfregão no lixo é remoto.
Esses almoços de domingo moldaram a minha vida.
Tenho a idade que os meus pais tinham durante esses almoços e pergunto-me se eles olhariam para mim da mesma maneira que eu, agora, olho para os meus filhos.
Talvez os meus pais já fossem capazes de imaginar este momento, eu crescido, estas crianças à mesa, a minha mãe com setenta anos e o meu pai sem estar cá.
Chego a casa de uma das minhas irmãs. A televisão está ligada num dos canais de desenhos animados. As vozes fingidas dos bonecos misturam-se com as nossas vozes, reais, a dizerem palavras que, para mim, com trinta e oito anos, são demasiado nítidas.
Sinto-me culpado. Diante de todas as escolhas, como diante de cruzamentos, quando escolhi caminhos que me afastavam dos almoços de domingo, senti-me sempre culpado. Os almoços nunca são na minha casa. Não tenho casa para almoços de domingo.

José Luís Peixoto
http://www.youtube.com/watch?v=WDWq5I-Znkk

domingo, 21 de abril de 2013

Livro das Horas


A tradição familiar me acompanha. Cedeu-me um repertório de acertos e desacertos. Uma bagagem que atualiza certos episódios, como os dois anos vividos em Borela, em comunhão com a natureza galega.
Na casa da avó, o mundo me exaltava. Sentia-me Atlas a reter a esfera da Terra em suas mãos. Enfrentava, destemida, a geografia adversa, enquanto aprendia o galego, o espanhol, os costumes locais, o substrato da grei  de que me originara.
Aos poucos aprendia a respeitar as funções milenares das aldeias, a entender as peculiaridades inerentes ao camponês galego. Não me furtava a participar das ocorrências diárias, que já faziam parte da minha vida. Em especial da colheita do milho, que exigia celebração. Afinal, o milho salvava-os da fome, da inclemência do inverno.
Reunidos no pátio da casa da avó Isolina, desfolhávamos as espigas que seriam estocadas no belo hórreo, ou canastro, localizado atrás da casa.
O clima era festivo. Eu copiava a diligência com que eles retiravam a palha da espiga até ao sabugo, jogada dentro das cestas empilhadas à nossa frente. Dali a espiga iria para o canastro, construção hoje clássica do cenário galego.
O trabalho árduo só era interrompido para a merenda regada a vinho e a histórias fomentadas pelas intrigas. Na expectativa todos de surgir a qualquer momento a espiga vermelha alçada à categoria de relíquia. E isto porque quem a obtivesse ganhava o direito de cobrar um beijo de quem fosse. Um achado que propiciava festejar os sentidos, entoar canções com poemas de Rosalía de Castro e rubores no rosto, além de acanhamentos.

Nélida Piñon
http://www.youtube.com/watch?v=6fmkJoWCcw8

domingo, 14 de abril de 2013

Pequena Feiticeira



Com a idade de 17 meses
Tudo é novidade
O mundo está aí
Só para ti
Ao alcance da tua mão
dos teus passos
da tua vontade

Muito obstinada,
Adoras fazer experiências
Correr, saltar, trepar, andar para trás
Inventas variantes cada vez mais difíceis
Festejas com orgulho as tuas vitórias

Já descobriste o poder da palavra,
Minha pequena feiticeira,
Diverte-te imenso brincar com os sons
Mas repetir uma palavra exige de ti
Muita concentração.
Palminhas, palminhas,
Conseguiste!


domingo, 7 de abril de 2013

Minha Pátria


Minha pátria não é a língua portuguesa.
Nenhuma língua é a pátria.
Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci
e o vento que sopra em Maceió.
São os caranguejos que correm na lama dos mangues
e o oceano cujas ondas continuam molhando os meus pés quando sonho.
Minha pátria são os morcegos suspensos no forro das igrejas carcomidas,
os loucos que dançam ao entardecer no hospício junto ao mar,
e o céu encurvado pelas constelações.
Minha pátria são os apitos dos navios
e o farol no alto da colina.
A língua de que me utilizo não é e nunca foi a minha pátria.
Nenhuma língua enganosa é a pátria.
Ela serve apenas para que eu celebre a minha grande e pobre pátria
              muda,
minha pátria disentérica e desdentada, sem gramática e sem dicionário,
minha pátria sem língua e sem palavras.

Lêdo Ivo
http://www.youtube.com/watch?v=YIrMJ_ix0FA