domingo, 23 de fevereiro de 2014

para uma canção de embalar


embalo a minha filha joana que acordou num berreiro.
a casa está às escuras, vou passando com cuidado
para não dar encontrões nos móveis, embalo esta menina
que se calou mas está de olho muito aberto e quer brincar,
e há um halo de luz parda a coar-se pelas persianas
e às vezes uns faróis riscando estrias a correrem pelo tecto.

levo-a bem presa ao colo, toda de porcelana pesadinha,
enquanto a irmã está a dormir meio atravessada nos lençóis.
ao chegar-me a outra janela vejo as luzes fugindo na auto-estrada
em direcção ao rio, a uma placa da lua sobre o rio,
e trauteio "já gostava de te ve-er", enquanto acendo o fogão
para aquecer o leite e embalo a minha filha e a outra está a dormir.

oxalá cresçam ambas airosas e bem seguras,
e possam ir na vida serenamente como os rios correm,
ou como os veleiros voam, ou como elas agora respiram
em cadências regulares neste silêncio táctil.
a meio da noite um homem acordou no sossego da casa
e pôs-se a cuidar do sono das suas filhas pequenas.

oxalá haja fadas benfazejas esvoaçando das histórias
de princesas felizes e potros azul-turquesa, e forrem esta casa,
e pelas malvadas bruxas alegres sinos dobrem,
e estas meninas existam incólumes e puras no seu quente contentamento,
mesmo que o mundo vá girando numa ordem sobressaltada,
mesmo que os mares agonizem nos seus gonzos de chumbo.

Vasco Graça Moura
http://www.youtube.com/watch?v=0uerk86OpLk

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Ao rés da água

                         

                             No loch, ao rés da água,
                             dorme a foca sobre a pedra,
                             o sol é mínimo, a luz gelada.
                             Ullapool.
                             Cumprindo o ritual aceite,
                             rumo à Celtic Leather.
                             Cabelo embranquecido
                             neste intervalo que pareceu tanto,
                             a dona envelheceu, rugas agora
                             e o sorriso mais doce ainda.
                             Embarco para Stornoway,
                             um clã de golfinhos desenha,
                             à ilharga do ferry, os seus arcos
                             de graciosidade e alegria.
                             Depois a demanda de Callanish
                             e o aguardado pulsar de energia
                             daquelas pedras,
                             que de tão milenares,
                             parecem do princípio do tempo.
                             É lugar de renovação,
                             onde a mente se repousa
                             e atingimos o branco.
                             Devo, outrora, ter vivido ali.

                             Ou morrido ali.


                             João Alaiz
                             http://www.youtube.com/watch?v=GYnmfpA6yaQ

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Os meus Açores


Um lugar nunca é apenas "aquele" lugar: aquele lugar somos um pouco também nós. Seja como for, sem o sabermos, trazíamo-lo dentro de nós e um dia, por acaso, chegamos lá. Chegamos no dia certo ou no dia errado, conforme, mas isso não é responsabilidade do lugar, depende de nós. Depende de como lermos esse lugar, da nossa disponibilidade para o acolhermos dentro dos nossos olhos e dentro da nossa alma, de estarmos alegres ou melancólicos, eufóricos ou disfóricos, de sermos jovens ou velhos, de nos sentirmos bem ou de nos doer a barriga. Depende de quem somos no momento em que chegamos a esse lugar. Estas coisas aprendem-se com o tempo e, sobretudo, viajando. Mas há muitos anos, quando fiz a minha primeira viagem aos Açores, ainda não o sabia.
"Reconheces-me tu, ar, cheio dos lugares que uma vez foram meus?" É um verso de Rainer Maria Rilke que neste livro é recorrente. Alguém está a regressar a um lugar que conheceu noutros tempos e pede ao ar (o espírito do lugar?) que o reconheça, porque ele próprio não reconhece já esses lugares. Não reconhece o que contemplou noutros tempos nem o que nesse tempo sentia ao contemplar: as suas emoções, o seu eu de então. Cada lugar a que chegamos de viagem é uma espécie de radiografia de nós próprios. Muitas vezes, ingenuamente, tiramos fotografias com a ilusão de levarmos alguma coisa connosco. Mas as imagens são apenas a pele, pura aparência: o que esse lugar provoca em nós ao contemplá-lo  e vivê-lo não é fotografável. Acontece o mesmo que com os sonhos. Impelidos pelo desejo de comunicar a emoção sentida a alguém e quase com espanto damo-nos conta de que a história daquele sonho era banal, era um sonho como outro qualquer: assim ao contá-lo, não comunica nenhuma emoção, nem em quem nos escuta nem a nós próprios que o contamos. O que é que tinha então de tão especial para ter provocado tanta emoção? Nada. O importante daquele sonho não era o que acontecia, mas a maneira como o estávamos a viver: o sonho era a nossa própria emoção. Com um lugar é a mesma coisa. Contá-lo não significa descrevê-lo, mas conseguir transmitir, mesmo numa ínfima parte, as emoções que nos suscitou.

Antonio Tabucchi
http://www.youtube.com/watch?v=W4qjkIsYb4Y

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Neto-Avô

















Quando eu estou num bando alegre de crianças,
Ou num grupo de bons e trémulos velhinhos,
Sinto uma paz estranha: eu vejo pombas mansas
Com ramos de oliveira a arquitectar os ninhos.

Ao pé dos velhos sinto um mórbido desmaio,
Mas, se as crianças vêm, renasce-me o vigor;
Porque elas são a flor das árvores em Maio,
E os velhos são o Outono, as árvores em flor...

Contudo ao ver, em torno, as criancitas belas,
Brincando como uma ave, a rir como as andorinhas,
Os velhos a brincar e rindo como elas,
Transformam-se, bom Deus! Em velhos-criancinhas.

Os velhos são o inverno, a infância é o sol ardente:
No entanto, apesar disso, ao ouvi-los falar,
Eu sinto-me feliz e regalado e quente,
Como ao pé dum bom fogo, entre a expansão dum lar...

Inflamo-me, se escuto as suas idas glórias,
Com que guerreiro amor brandiam as espadas!...
E às crianças, então eu conto-lhes histórias,
Em que entram moiras, reis e príncipes e fadas...

De modo que hesitante, ó murchas esperanças!
Entre a velhice e a infância, entre esses dois caminhos,
Penso que sou avô, ao lado das crianças,
E julgo-me criança, ao lado dos velhinhos...

António Nobre
http://www.youtube.com/watch?v=A86rdOJzcgY