segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Outono

                                 
                                 
                                    Tarde pintada
                                    Por não sei que pintor.
                                    Nunca vi tanta cor
                                    Tão colorida!
                                    Se é de morte ou de vida,
                                    Não é comigo.
                                    Eu, simplesmente, digo
                                    Que há tanta fantasia
                                    Neste dia,
                                    Que o mundo me parece
                                    Vestido por ciganas adivinhas,
                                    E que gosto de o ver, e me apetece
                                    Ter folhas, como as vinhas.

                                     Miguel Torga
                                     https://www.youtube.com/watch?v=vdCEn_wWm2I

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Dia de Outono

                       
                         
                           Senhor, é tempo. O Verão foi muito longo.
                           Põe nos quadrantes já sombras escuras
                           e nas planuras larga o vento à solta.

                           Obriga os frutos a que se encham mais;
                           dá-lhes do sul inda dois dias quentes,
                           leva-os à perfeição e faze que entrem
                           no vinho denso as doçuras finais.

                           Quem não tem casa já não vai erguê-la.
                           Quem esteja só, fica mais só agora,
                           lendo, escrevendo cartas, altas horas
                           ou, dum lado para o outro, na alameda,
                           inquieto andando, enquanto as folhas correm.

                           Rainer Maria Rilke
                           (trad. de A. Herculano de Carvalho)
                           https://www.youtube.com/watch?v=Q2q_ngA-X3c

sábado, 13 de setembro de 2014

Olhão


Agosto - 1922
De manhã saio em Olhão deslumbrado. Céu azul-cobalto - por baixo chapadas de cal. Reverberação de sol, e o azul mais azul, o branco mais branco. Cubos, linhas geométricas, luz animal que estremece e vibra como as asas de uma cigarra. Entre os terraços um zimbório redondo e túmido como um seio aponta o bico para o ar. E ao cair da tarde, sobre este branco imaculado, o poente fixa-se como um grande resplendor. É uma terra levantina que descubro, só lhe faltam os esguios minaretes.
É no cais, ao pé da praia, a que chamam baixa-mar, é no cais fedorento, entre os homens que andam na faina, os estaleiros abandonados e as caixas de sardinha para embarque, que eu assisto todos os dias ao espectáculo da chegada dos barcos e que vejo os peixes, as redes e o leilão. Para lá da água empoçada ficam os areais, a ilha da Armona, a do Levante, a ilha da Culatra e o farol de Santa Maria. E é aqui também, na agitação da baixa-mar, que eu anoto os nomes das diferentes redes e dos diferentes peixes: a murjona, o tapa-esteiros, que apanha o peixe no rio à maneira que a água vai vazando, a toneira para os chocos e as lulas, a redinha e o tresmalho, e outras engenhocas do subtil pescador, que chega a agarrar o langueirão com um botão de ceroula e alguns alfinetes e o polvo com velhos alcatruzes de nora. Tudo vem ter ao cais - peixes esplêndidos de uma abundância e de uma variedade extraordinária - do rio o linguado, o pregado, o peixe-rei, o charroco, os capitões, os alcabrozes, os robalos, etc., uns pescados à fisga, como a liça, a safata, o robalo, outros ao anzol e ao candeio; e do mar, despejados nas linguetas, montes de cações, de galhudos, que têm um pique no cerro, de monstruosas raias, de donzelas, de albufares pardacentos e enormes e de feios dentulhos. Atiram do fundo do barco para as pedras a abrótea, bandos de vermelhos e lindos cantarilhos, que parecem peixes de aquário, chaputas de um negro prateado com o rabo aberto como as pontas da cauda da andorinha, esguias tintureiras, corvinas e cestos de polvos enrodilhados.
É uma magnificência. Paro com assombro diante do monstruoso tamboril, só boca, com uma boca maior que um açafate, e que usa para atrair a presa duas linhas na cabeça com uma isca na extremidade. Já cheiro a peixe e a salmoura e não me canso.

Raul Brandão
http://www.youtube.com/watch?v=A2RSJ6NUscQ

terça-feira, 9 de setembro de 2014

O Algarve


O Algarve, para mim, é sempre um dia de férias na pátria. Dentro dele nunca me considero obrigado a nenhum civismo, a nenhuma congeminação telúrica nem humana. Debruço-me a uma varanda de Alportel e apetece-me tudo menos ser responsável e ético. Sinto-me livre, aliviado e contente, eu que sou a tristeza em pessoa! A brancura dos corpos e das almas, a limpeza das casas e das ruas, e a harmonia dos seres e da paisagem lavam-me da fuligem que se me agarrou aos ossos e clarificam as courelas encardidas que trago no coração. No fundo, e à semelhança dos nossos primeiros reis, que se intitulavam senhores de Portugal e dos Algarves, separando sabiamente nos seus títulos o que era centrípeto do que era centrífugo no todo da Nação, não me vejo verdadeiramente dentro da pátria. Também me não vejo fora dela. Julgo-me numa espécie de limbo da imaginação, onde tudo é fácil, belo e primaveril. A terra não hostiliza os pés, o mar não cansa os ouvidos, o frio não entorpece os membros, e os frutos são doces e sempre à altura da mão.
Quem tentasse explicar a estes gnomos ensimesmados as agruras dum homem do Doiro a saibrar mortórios de sol a sol, não obtinha compreensão. Moiros encantados numa moirama sem areais, vivem da graça que só a raros sítios do mundo a natureza concedeu. Os caminhos não têm abismos, não há fragas estéreis e agressivas, não se vê outra neve a não ser a das corolas abertas, e as fainas do mar são tão lúdicas como as da terra.
Hospedado numa bem-aventurança terrena, a minha obrigação é fruí-la discretamente, sem trazer a terreiro a má-criação dos meus pecados velhos. Os guias e os prospectos de turismo bem me empurram: - Que não deixe de ir ver isto, examinar aquilo, verificar aqueloutro. Mandam-me à praia da Rocha tomar banhos oficiais em Janeiro; recomendam-me, em Sagres, o banco de calcáreo onde o Infante magicava; identificam-me a casa que viu nascer João de Deus; querem que relembre em Alvor a lenta e trágica agonia de D. João segundo, o maior e o mais infeliz rei de Portugal.
Vou, mas fico na minha. Em toda a parte é a mesma volúpia que me invade, a mesma beatitude que me possui. Que me importam as paredes do castelo de Silves pintadas de sangue fiel ou infiel, as arquitecturas do Marquês, em Vila Real de Santo António, ou os biocos de Olhão? A lição que me interessa não é histórica, nem artística, nem etnográfica. Cheio de façanhas, de urbanismos e de folclore ando eu. Apaixona-me é a vivência da minha própria felicidade num mundo que me recebe na mais discreta e acolhedora simplicidade.

Miguel Torga
https://www.youtube.com/watch?v=acs7d9aQcc4