terça-feira, 9 de setembro de 2014

O Algarve


O Algarve, para mim, é sempre um dia de férias na pátria. Dentro dele nunca me considero obrigado a nenhum civismo, a nenhuma congeminação telúrica nem humana. Debruço-me a uma varanda de Alportel e apetece-me tudo menos ser responsável e ético. Sinto-me livre, aliviado e contente, eu que sou a tristeza em pessoa! A brancura dos corpos e das almas, a limpeza das casas e das ruas, e a harmonia dos seres e da paisagem lavam-me da fuligem que se me agarrou aos ossos e clarificam as courelas encardidas que trago no coração. No fundo, e à semelhança dos nossos primeiros reis, que se intitulavam senhores de Portugal e dos Algarves, separando sabiamente nos seus títulos o que era centrípeto do que era centrífugo no todo da Nação, não me vejo verdadeiramente dentro da pátria. Também me não vejo fora dela. Julgo-me numa espécie de limbo da imaginação, onde tudo é fácil, belo e primaveril. A terra não hostiliza os pés, o mar não cansa os ouvidos, o frio não entorpece os membros, e os frutos são doces e sempre à altura da mão.
Quem tentasse explicar a estes gnomos ensimesmados as agruras dum homem do Doiro a saibrar mortórios de sol a sol, não obtinha compreensão. Moiros encantados numa moirama sem areais, vivem da graça que só a raros sítios do mundo a natureza concedeu. Os caminhos não têm abismos, não há fragas estéreis e agressivas, não se vê outra neve a não ser a das corolas abertas, e as fainas do mar são tão lúdicas como as da terra.
Hospedado numa bem-aventurança terrena, a minha obrigação é fruí-la discretamente, sem trazer a terreiro a má-criação dos meus pecados velhos. Os guias e os prospectos de turismo bem me empurram: - Que não deixe de ir ver isto, examinar aquilo, verificar aqueloutro. Mandam-me à praia da Rocha tomar banhos oficiais em Janeiro; recomendam-me, em Sagres, o banco de calcáreo onde o Infante magicava; identificam-me a casa que viu nascer João de Deus; querem que relembre em Alvor a lenta e trágica agonia de D. João segundo, o maior e o mais infeliz rei de Portugal.
Vou, mas fico na minha. Em toda a parte é a mesma volúpia que me invade, a mesma beatitude que me possui. Que me importam as paredes do castelo de Silves pintadas de sangue fiel ou infiel, as arquitecturas do Marquês, em Vila Real de Santo António, ou os biocos de Olhão? A lição que me interessa não é histórica, nem artística, nem etnográfica. Cheio de façanhas, de urbanismos e de folclore ando eu. Apaixona-me é a vivência da minha própria felicidade num mundo que me recebe na mais discreta e acolhedora simplicidade.

Miguel Torga
https://www.youtube.com/watch?v=acs7d9aQcc4

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