É o tema das visões e das vozes, um pouco ameaçador agora quando se lembra aquilo por que se passou. Era o costume das infâncias: viam-se faiscar os rostos, súbitos como pedrarias nos quartos obscuros, assemelhavam-se a alvéolos de colmeias uns sobre os outros. Estávamos atentos às matérias e sopros do mundo expressos em imagens e vozes autónomas. Nem sequer nos apercebíamos bem de que as noites separavam os dias: era verão. O espaço, os encontros, as caras, o cabelo das mulheres, roupas estendidas a suar, o vento amplo, grandes pedras, grandes girassóis, a fruta amarela, os bichos. Crescíamos no meio do atordoamento de flores e animais, crescíamos assim. Uma noite acordei com o som dos meus próprios gritos.
Trouxeram uma vez um porco selvagem caçado nas serras e atiraram-no para cima da mesa da cozinha, uma longa mesa coberta de zinco. Abriram-no de alto a baixo com enormes facalhões e cutelos, o sangue corria por todos os lados, meteram as mãos e os antebraços na massa vermelha, e eles reapareceram depois como calçados de luvas sangrentas, vivas; deitaram então para os baldes as vísceras que fumegavam: os pulmões, o fígado, os intestinos. De tudo aquilo subia um perfume agudo, embriagador, doloroso. À noite tive febre. Havia qualquer coisa pérfida e perversa neste mundo das frutas muito fortes, dos animais esquartejados, dos cheiros, este mundo espesso e quente, um mundo de imagens orgânicas.
Era a ordem ininterrupta das magias: à meia-noite de sábado cravava-se uma faca no tronco das bananeiras, ia-se ver logo pela manhã, a seiva ácida deixara enigmáticas figuras na lâmina, decifrávamos, tínhamos inspirações, revelações: um cavalo, uma águia, um tigre, uma cobra, um leão. As bananeiras gemiam de noite: a sua carne rasgava-se por uma força que vinha de dentro, e das feridas brotavam os rebentos: cachos, frutas de ouro. Em tempo de trovoadas punham-se lençóis sobre os espelhos porque se acreditava que os espelhos nus atraíam os raios. Havia espelhos por toda a casa, alguns eram altos, do tamanho de uma pessoa, replicavam de corpo inteiro à travessia pelos corredores e quartos. A nossa própria imagem assustava-nos vinda bruscamente não sabíamos de onde, de que fundo, de que mundo. Era uma imagem que se agarrava à nossa, que se introduzia malignamente em nós carregada de poderes inexplicáveis. Durante uma dessas tempestades um raio fuzilou junto às janelas e vi no espelho, que eu mesmo cobria com o lençol, o meu rosto desdobrado, ardido, remoto: quem era?, um animal demoníaco, uma criança de cabeça zoológica, um killcrop?
Herberto Helder
https://www.youtube.com/watch?v=aGFUh4FhdQ8
Era a ordem ininterrupta das magias: à meia-noite de sábado cravava-se uma faca no tronco das bananeiras, ia-se ver logo pela manhã, a seiva ácida deixara enigmáticas figuras na lâmina, decifrávamos, tínhamos inspirações, revelações: um cavalo, uma águia, um tigre, uma cobra, um leão. As bananeiras gemiam de noite: a sua carne rasgava-se por uma força que vinha de dentro, e das feridas brotavam os rebentos: cachos, frutas de ouro. Em tempo de trovoadas punham-se lençóis sobre os espelhos porque se acreditava que os espelhos nus atraíam os raios. Havia espelhos por toda a casa, alguns eram altos, do tamanho de uma pessoa, replicavam de corpo inteiro à travessia pelos corredores e quartos. A nossa própria imagem assustava-nos vinda bruscamente não sabíamos de onde, de que fundo, de que mundo. Era uma imagem que se agarrava à nossa, que se introduzia malignamente em nós carregada de poderes inexplicáveis. Durante uma dessas tempestades um raio fuzilou junto às janelas e vi no espelho, que eu mesmo cobria com o lençol, o meu rosto desdobrado, ardido, remoto: quem era?, um animal demoníaco, uma criança de cabeça zoológica, um killcrop?
Herberto Helder
https://www.youtube.com/watch?v=aGFUh4FhdQ8