domingo, 26 de junho de 2016

Ilha natal



Encontrava-me agora na ilha onde nascera; muitos anos de ausência seguida, e estava ali. Para morrer? O meu centro, o âmago, era esta terra que afinal eu não reconhecia como esperava, com alvoroço, com uma emoção porventura amarga, difícil, mas não desta maneira recuada, como se eu não fosse vulnerável aos prestígios da minha tradição. Aquilo que a vista me dava, basaltos, espumas, corolas altas fremindo, corolas animais, e as ruas e casas, os nomes, evocações de pessoas, factos, instantes vertiginosos e misteriosos, o tormento e o júbilo, os pactos irrevogáveis com o destino próprio, ali, naquele sítio - nenhuma dessas experiências, nada, nenhuma imagem confirmada pelo olhar, ou esse odor de vaza marinha, de jasmins, e o vento trazido das montanhas, nada era vivo, actual, reiterado, circulatório, nada me reatava, um ímpeto do espírito, uma religação; eram coisas, aquelas, conferidas como realidades independentes de mim, arranjos do espaço que uma espécie de indiferença lúcida achava irrecusáveis mas irrecuperáveis na consciência, a consciência não fora abalada. Eu não reconhecia o mundo, aquele. Poderia então morrer, insensível, ali? Só morremos de nós mesmos, e se existe uma figura topográfica, geográfica, talvez seja escolhida ou imposta pela inspiração que dirige profundamente a nossa vida. Esta ilha não se integrava na minha ordem espiritual e fora nela contudo que eu arrecadara os ganhos fundamentais, os primeiros, naquelas imagens, nos acontecimentos por assim dizer nascidos nesses lugares, nascidos deles, ali concebera como reitoria irreversível e inocente aquilo que, com alguma veracidade, alguma retórica, alguma fé, se chamaria destino.
Quase me apetece escrever que a alimentação mítica, a minha, se fizera daquela substância mas os elementos tanto se haviam purificado, de tal maneira tinham sido dispostos, que constituíam um universo autónomo, irreferenciável, absoluto. Fora ali que eu nascera. Mas creio haver quem nasça de si próprio e significa talvez, isto, que nada tenho a ver com a história, que a criei, eu, à história, passe a megalomania se o é.

Herberto Helder
https://www.youtube.com/watch?v=zwHsv_AsSqg

domingo, 19 de junho de 2016

A ilha da Madeira




Agora conheço melhor a Madeira. Passado o primeiro entusiasmo, vejo tudo a frio. Esta ilha é um cenário e pouco mais - cenário deslumbrante com pretensões a vida sem realidade e desprezo absoluto por tudo que lhe não cheira a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em inglês e tudo preparado e maquinado para inglês ver e abrir a bolsa. Eles saem dos paquetes -  e logo o Funchal se arma como um teatro - secos, graves, dominadores; elas saem do mar vestidas de noiva, de bengala na mão e blusa de croché, passeando a sua importância e as suas libras esterlinas em terreno conquistado. Sentado à porta do Golden Gate, ouço o apito do vapor, e já sei o que se vai passar: muda a armação como um cenário de mágica. Surgem homens com grandes chapéus de palha para vender bordados, colares falsos de coral, cestos de fruta; iluminam de repente as lojas, e segue o desfile de tipos. Mas as máquinas de bordo dão o sinal e uma hora depois esta vida fictícia desapareceu e tudo reentra no isolamento e no silêncio.
Mas a Madeira é também uma estação de Inverno com alguns magníficos hotéis. Esta terra quase tropical, cujo calor, no Verão, a viração modera, com excepção dos dias de siroco, em que não se respira, no Inverno é uma delícia. Ar balsâmico, temperatura morna. Imaginem o que será vir de Londres, da borrasca, do frio que enregela, do negrume que enerva e enche as almas de tristeza e de lama, e, com dois dias de vapor, chegar diante da jóia voluptuosa que voga suspensa no azul... O porto é panorâmico. Sabe a fruta o ar fino que entra pelos pulmões - doze graus e o sol doirado caindo a jorros. Há dias tão lindos que a gente tem medo de lhes tocar - imóveis, e de um azul magnético. A vida não tem peso, tudo parece um sonho. As noites são de magia. Rosas por todo a parte. O sopro tépido vem dos montes. E isto bebe-se devagarinho, aos golos - entra nos poros e nas almas e enlanguesce-as. Quem pode acreditar na morte, no frio horrível e eterno, diante da natureza, que nos estende os braços cheia de flores e de perfumes em pleno Inverno?...
Vejamos, porém, o cenário pelo lado de trás... Turismo, álcool e açúcar têm degradado o povo e enriquecido alguns felizes da terra. O homem do Funchal, em contacto com o progresso, transformou-se em hoteleiro, engraxador e chauffeur.
Ora, entre o turismo que tem dado semelhante resultado e a hospitalidade, não hesito em dizer que detesto o turismo, e adoro a hospitalidade. Adoro a antiga Espanha, durante muito tempo rebelde à exploração, recusando a adaptar-se à vontade alheia, e a satisfazer os estrangeiros com um sorriso falso, até ao ponto de mudar usos e costumes para lhes ser agradável. O estrangeiro entra sempre num país de turismo como num hotel - como quem paga. Ora uma nação não deve ser um hotel - e Deus nos livre que o seja!

Raúl Brandão

domingo, 5 de junho de 2016

A Fada das Crianças

                     

                        Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
                        Voando pela noite silenciosa,
                        A fada das crianças, vem, luzindo.
                        Papoulas a coroam, e, cobrindo
                        Seu corpo todo, a tornam misteriosa.

                        À criança que dorme chega leve,
                        E, pondo-lhe na fronte a mão de neve,
                        Os seus cabelos de ouro acaricia —
                        E sonhos lindos, como ninguém teve,
                        A sentir a criança principia.

                        E todos os brinquedos se transformam
                        Em cavalos e soldados e bonecas,
                        Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam,
                        E palhaços que tocam em rabecas…

                        E há figuras pequenas e engraçadas
                        Que brincam e dão saltos e passadas…
                        Mas vem o dia, e, leve e graciosa,
                        Pé ante pé, volta a melhor das fadas
                         Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.

                        Fernando Pessoa
                        (pintura de Paul Gauguin)
                        https://www.youtube.com/watch?v=NMaL-Hkk3dQ