domingo, 31 de julho de 2016

Paisagem Portuguesa



Concebe-se, sem dificuldade, a razão de ser da indústria turística, com todos os benefícios que dela possam advir, mas é legítimo não a estimarmos, em tão larga escala, para nós. Sobretudo, porque ao turista preferimos, mil vezes, o forasteiro. Este, não nos incomoda ver e sentir vibrar a nosso lado, sempre que nos encontramos, sem binóculo nem máquina fotográfica, perante um trecho marítimo ou bucólico da nossa paisagem. É que o forasteiro, mesmo oriundo de estrangeira terra, é um ser humano que transporta, quando não ideais, pelo menos objectivos desinteressados e um gosto, bom ou mau, mas muito seu. O outro é um sujeito de gosto convencional e de vontade colectiva. Só irá, em rebanho, aonde o levarem ou lhe disserem que deve ir. Desprovido de sensibilidade e de imaginação, seria, por exemplo, incapaz de perder-se, de propósito, em Sintra, para gozar o prazer de descobrir vistas inéditas, jardins solitários, nascentes ocultas na espessura das encostas. Viaja para cumprir os roteiros oficiais. Consulta o guia, assesta o binóculo, tira fotografias e sorri. Pode ser, internacionalmente, inofensivo - e, até, muito útil - mas macula a paisagem. Por isso a nossa paisagem não gosta de turistas. Eu já sonhei-como-se-visse um florido vale esconder-se, de repente, em densa névoa, por causa da maneira indiscreta, quase insolente, como um turista olhava para ele. Porque, se a paisagem pode ser feminina (no que a palavra sugere de peculiar beleza, de fecunda e carinhosa amorosidade) talvez não exista nenhuma que o seja tanto como a nossa.

domingo, 24 de julho de 2016

Este é o tempo


Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura 

Este é o tempo em que os homens renunciam.

Sophia de Mello Breyner Andresen
(pintura de Pollock)
https://www.youtube.com/watch?v=7atmvDynyBg

domingo, 17 de julho de 2016

O Dilúvio


Há muitos dias já, há já bem longas noites 
que o estalar dos vulcões e o atroar das torrentes
ribombam com furor, quais rábidos açoites,
ao crebro rutilar dos coriscos ardentes.

Pradarias, vergéis, hortos, vinhedos, matos,
tudo desapar'ceu ao rude desabar
das constantes, hostis, raivosas cataratas,
que fizeram da Terra um grande e torvo mar.

À flor do torvo mar, verde como as gangrenas,
onde homens e leões bóiam agonizantes,
imprecando com fúria e angústia, erguem-se apenas,
quais monstros colossais, as montanhas gigantes.

É aí que, ululando, os homens como as feras
refugiar-se vão em trágicos cardumes,
O mar sobe, o mar cresce, e os homens e as panteras,
crianças e reptis caminham para os cumes.

Os fortes, sem haver piedade que os sujeite,
arremessam ao chão pobres velhos cansados.
E as mães largam, cruéis, os filhinhos de leite,
que os que seguem depois pisam, alucinados.

Cresce no mar, sobe o mar... e traga, rudemente,
da mais alta montanha o píncaro nevado.
E um tremendo trovão aplaude a vaga arlente,
que envolve, ao despenhar-se, o último condenado.

Cresce o mar, sobe o mar, que já topeta os céus:
e, levada plo fero e desabrido norte,
sua espuma, a ferver, molha o rosto de Deus,
que lhe encontra um sabor nauseabundo de morte...

Cresce o mar, sobe o mar... Cada vaga é uma torre!
No céu, o próprio Deus melancólico pasma...
E, pelos vagalhões acastelados, corre
a Arca de Noé, qual navio-fantasma...


Eugénio de Castro
 (pintura de Francisco Metrass)
 https://www.youtube.com/watch?v=jXxmvsllhCg

domingo, 10 de julho de 2016

las meninas

                                 

                                   eu fico à esquerda no computador.
                                   durante a tarde vou escutando discos.
                                   a teresa foi buscar lápis de cor
                                   e faz na folha grandes asteriscos:

                                   desenha a jarra e a flor e outra flor;
                                   mas como a vassourinha trás dos ciscos
                                   a joana desaustina em derredor:
                                   vai-se à obra da irmã e enche-a de riscos.
                             
                                   no espelho a luz entre água e sombras voga
                                   e em aéreos espaços ma detenho,
                                   com a porta a rasgar-se mais ao fundo.

                                   e o cão. e os sete anões. assim se joga,
                                   do olhar à flor, do lápis ao desenho,
                                   o jogo das meninas com o mundo.

                                   Vasco Graça Moura
                                   (pintura de Renoir)
                                   https://www.youtube.com/watch?v=1-EfSGTdep8

domingo, 3 de julho de 2016

A Sombra do Passado 2

                     

                           Eis-me, outra vez, na terra onde nasci;
                           Sagrada e tosca terra primitiva,
                           Boa terra fecunda, que eu bem sinto
                           Formar meu corpo, minha carne viva!
                           E cobre, igual ao barro duma estátua,
                           Meus ossos que são feitos de saudades...
                           E, se nos campos desabrocha em flores,
                           Em mim, se altera em doidas ansiedades!
                           Boa terra sensível que, à tardinha,
                           Como nós, entristece... e fica a ouvir
                           A voz da escuridão... mas, ao tocar-lhe
                           Um soluço de fonte, é  lírio a abrir.
                       
                           Teixeira de Pascoaes
                           (texto e auto-retrato)
                           https://www.youtube.com/watch?v=XB9w8OCc6_g