sábado, 27 de agosto de 2016

Encostas do Douro


O grande pedregulho de que o homem obstinado extrai a melhor fruta do mundo e o melhor vinho do mundo, o líquido dourado que sabe a sol e é um extracto de sol. Criado nas encostas, a um calor senegalesco, o mais perfeito, dizem, é o que ouve ranger a espadela do barqueiro, nos sítios onde o homem bate o queixo com febre, e onde a terra grita de dor ao céu - e o céu sem lhe acudir. É nesta secura de inferno, que aquele tipo que além vês magro e reduzido a pele e osso pela labareda, planta a vinha, cava, escava, calça, sulfata. Ajuda-o a mulher tão feia e seca como ele. Ajuda-o o sol que assa sardinhas nos rails do caminho de ferro. Que diabo de figura é esta, para quem olho com respeito, que se atreveu com o pedregulho e o abriu a marreta e a ferro, e às vezes a dinamite, até pulverizar o chão para lhe meter os bacelos? Donde ninguém tiraria senão pedras, tirou ele, não só o melhor vinho do mundo, mas os figos que sabem a mel e as laranjas como torrões de açúcar que deixam a boca perfumada.
O Douro é o rio mais belo, mais dramático e mais variado de Portugal. Cenários sobre cenários, nos dias soturnos em que o fraguedo lhes parecia ainda mais trágico, com o rio esganado entre pedras e montanhas socalcadas pelo homem, para aguentarem alguns bocados de terra a esboroar-se. O Alto Douro, a terra do vinho fino, é também a terra dos panoramas tétricos, dos sítios onde reina a febre, das povoações concentradas, recozendo ao sola fealdade - uma aqui, outra além, Pocinho, donde vai a linha para Moncorvo.

Maria Angelina - Raul Brandão
https://www.youtube.com/watch?v=jgVWPF3k85s

domingo, 21 de agosto de 2016

Tormes


Trepávamos então alguma ruazinha de aldeia, dez ou doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar pela telha vã, o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos, por cima da negrura pensativa dos pinheirais, branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e na alma espalhava alegria e força. Um esparso tilintar de chocalhos de guizos morria pelas quebradas...
Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava:
- Que beleza!
E eu atrás, no burro de Sancho, murmurava:
- Que beleza!
Frescos ramos roçavam os nossos ombros com familiaridade e carinho. Por trás das sebes, carregadas de amoras, as macieiras estendidas ofereciam as suas maçãs verdes, porque as não tinham maduras. Todos os vidros de uma casa velha, com a sua cruz no topo, refulgiram hospitaleiramente quando nós passámos. Muito tempo um melro nos seguiu, de azinheiro a olmo, assobiando os nossos louvores.
Assim, vagarosamente e maravilhados, chegámos àquela avenida de faias, que sempre me encantara pela sua fidalga gravidade. Atirando uma vergastada ao buro e à égua, gritou:- Aqui é que estemos, meus amos! - E ao fundo das faias, com efeito, aparecia o portão da quinta de Tormes, com o seu brasão de armas, de secular granito, que o musgo retocava e mais envelhecia.