domingo, 11 de setembro de 2016

Um escritor confessa-se


Tinha-me deixado possuir da feitiçaria das coisas ternas da natureza, de que só então dei conta que existiam. Eu reintegrava-me no meio de que derivara, e nessa operação sentia a delícia das delícias. Era como o lagarto que, depois de hibernar, se espreguiça ao sol.
Na nossa propriedade, contígua à casa, a batata, o feijão e outros primores da terra medravam a bom medrar, bafejados pela graça, representada pela abundante água da mina, o esterco dos estábulos, sacho constante e sol. Minha mãe fazia já a sopa com "beijinhas", as vagens tenras que ia ela própria cortar dos feijoeiros, adubando-a a presunto e salpicão. Mandava todas as manhãs tirar batatas novas, tão tenras que bastava friccioná-las na mão fechada para despirem o fino manto da pele. Aferventadas, derretiam-se na boca como bombons. O homem prende-se pela gula, como todo o vivente. Há um sentido que vem após. Com efeito, ao gozo e prazer da liberdade corresponde qualquer órgão no animal, ilocalizado como o da direcção em certos bichos, tão premente que ele lá está ora e sempre, e chega a prevalecer mesmo aos demais sentidos.
Esse sentimento, concluí eu mergulhando no poço escuro interior, era porventura o que acima de tudo me prendia na serra. Aqui eu ia para onde os passos me levavam, em franca locomoção, através de montes e vales, de manhã, à noite, que não havia muro, letreiro, relógio que me limitassem o rumo. Só assim o homem é senhor do espaço, como as aves e os bichos monteses. E, já que fora à cidade buscar olhos para ver, direi mesmo, sentidos para gozar a natureza, pela qual dantes passava com uma indiferença perfeitamente selvagem, gozava-a com todos os poros e à farta.

Aquilino  Ribeiro
(escultura de José Rodrigues)
https://www.youtube.com/watch?v=mFp0L_L_5FE

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