domingo, 26 de março de 2017
O Quinto Império
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz —
Ter por vida a sepultura.
Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!
E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.
Grécia, Roma, Cristandade,
Europa — os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?
Fernando Pessoa
(pintura de Júlio Pomar)
https://www.youtube.com/watch?v=KS37iml3-Qw
quarta-feira, 22 de março de 2017
Os passarinhos
que pequenos, coitadinhos,
os estouvados
dos passarinhos!
A sua vida é cantar,
voar,
brincar pelo ar,
e alegrar
com seus chilreios
tão cheios
de graça e boa alegria,
a luz do dia!
Que bonitos, que engraçados,
os passarinhos
se estão casados
dentro dos ninhos,
e vão criando, com mil cuidados,
os seus meninos.
E então quando os pequeninos,
já mais crescidos,
podem sair?...
Vêm com eles os seus pais,
e eles piam,
piam,
piam,
muito contentes, os atrevidos,
assim a modo que a rir
e aos ais..
E os pais
estão mesmo a dizer: - "Vê lá se cais!
Por aqui, por aqui, por este lado,
devagarinho,
que tu és um passarinho
muito pequeno! Cuidado!...
Sim, quando fores grande, então voarás;
serás capaz
de subir, de subir, de subir pelo ar,
e de ir subindo,
cantando e rindo,
sempre a voar,
lá tão alto, que o Sol fique pertinho
de ti, meu pobre e lindo passarinho!...
domingo, 12 de março de 2017
Num bairro moderno
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara ajoelhando a sua giga.
Do patamar responde-lhe um criado:
"Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais." E muito descansado,
Atira-lhe um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.
Subitamente - que visão de artista! -
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados,
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas - os rosários de olhos.
Cesário Verde
(pintura de Arcimboldo)
https://www.youtube.com/watch?v=XeL3GecQJV0&t=33s
domingo, 5 de março de 2017
Mar e Luar
Banhados pelo luar, o mar e os rochedos transfiguram-se,
as naus e os corvos duplicam-se em fantasmas,
coroadas figuras de espessa imaginação
são matéria viva.
A música dos séculos repercute nas rochas,
ligaduras de som agarram a cabeça às massas duras
do tempo, há translações de milénios
nestes estratos, ardidas cidadelas da memória
traduzidas nas grutas.
Quem aborda, incauto, esta paisagem deve precaver-se.
Vertigens na garganta, guelras de batráquio,
a alma enrodilhada no sal, bárbaro o coração,
o corpo essa estéril mania.
Armando Silva Carvalho
(pintura de Noronha da Costa)
https://www.youtube.com/watch?v=FOCucJw7iT8&t=83s
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