E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara ajoelhando a sua giga.
Do patamar responde-lhe um criado:
"Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais." E muito descansado,
Atira-lhe um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.
Subitamente - que visão de artista! -
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados,
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas - os rosários de olhos.
Cesário Verde
(pintura de Arcimboldo)
https://www.youtube.com/watch?v=XeL3GecQJV0&t=33s
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