Homem de seiscentos diabos aquele senhor padre Francisco, tão escoteiro nas suas obrigações de pároco como, pelos montes, a bater as lebres! Bofe, no domingo de Páscoa, tinha alma de tirar o folar em Peva, abadia de três povoações com passante de trezentos fogos, pôr-se em Aris ainda muito a horas para a segunda missa e a visita ritual aos fregueses. Além da sua égua ruça papa-léguas, a engrolar o latim era ele subir ao altar e, mal um cristão se precata, vê-lo de braços abertos ite missa est. Atabalhoado, sim senhor, não obstante é preciso rasgo até a alinhavar.
Aris toda se enfeitara de véspera e de manhãzinha para a cerimónia, ruas varridas para as quintãs, colchas às janelas, raparigas, bem trajadas, aos ranchos pelos soalheiros à espera da aleluia.
Recebia-se a visita pascal na casa de fora, armada com a melhor lençaria, lençóis bordados, colchas de algodão em xadrez, mantas antigas de chita com papagaios de oiro, cortiços de abelhas, rosas-do-japão cor de carne, a encher um fundo, lavrado como leira, a branco e azul de mar. Sobre a arca, atoalhada do mais puro linho, apresentava-se o folar, rimas de queijos e bolos, pratos de ovos, ou moedas entaladas em laranjas, à falta destas, pêros; nas casas lautas uma pichorra com vinho, rabo de porco ou orelheira para o arrebenta-diabos; e acima de todo este preparo, o Cristo da família, defumado da fuligem e mordido do tempo, com uma flor de arraial por detrás da nuca, abençoava.
A romaria corria veloz; à frente o campainheiro, badalando como vaca-toira, após, o Torres com a cruz, no couce o padre e seus beleguins. O Torres destampava o Santo Cristo. Tinham-lhe posto uma grande camélia acima da coroa e parecia banhado em sangue e esparrinhar à roda ondas de sangue. A família, de joelhos, colava os lábios nos pés puídos pelos beijos de séculos:
- Aleluia! Aleluia!
O Sr. padre Francisco pegava no hissope e aspergia as cabeças sorridentes, a casa, o folar, os papagaios bisnaus no pano azul-marinho:
- Boas festas! Boas Festas! Aleluia!
Despedia de roldão como tinha entrado, e era aquele o momento mais solene do obséquio; se o senhor abade não fazia o gesto de "deixa lá", os guantes do Brás varriam para o cesto do Javardo o que sobre a toalha se mostrasse.
O dia de Páscoa era uma malhada para os padres. Enchiam as queijeiras e chegavam a criar-lhes mofo nas arcas os pães-de-ló e os bolos de trigo folhado. Os ovos que ajuntavam enfartariam um convento de gulosas freiras com seus capelães durante um trintário.
Aquilino Ribeiro
https://www.youtube.com/watch?v=zQy7fJA6KHk
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