quarta-feira, 28 de março de 2018

A fuga de Wang-Fô


O velho pintor Wang-Fô e o seu discípulo Ling andavam pelas estradas do reino dos Han. O reino dos Han: era o nome por que naquele tempo era conhecida a grande China. Ninguém pintava melhor que Wang-Fô as montanhas a sair do nevoeiro, os lagos sobrevoados pelas libelinhas, e as enormes vagas do Pacífico vistas a partir da costa. Dizia-se que as suas imagens santas atendiam imediatamente qualquer prece; sempre que ele pintava um cavalo, tinha que o mostrar preso a uma estaca ou seguro pelas rédeas, pois se assim não fosse o cavalo escapava-se do quadro, a galope, e nunca mais ninguém lhe punha a vista em cima. Os ladrões não se atreviam a entrar em casa de quem possuísse um cão-de-guarda pintado por Wang-Fô.
Ling, a troco das lições, tinha com ele todos os cuidados que um discípulo deve ter com o mestre.  Massajava à noite os pés cansados do velho, e de manhã levantava-se muito cedo para ir procurar nas cercanias uma paisagem que o mestre gostasse de pintar.
Uma tarde, ao pôr do sol, chegaram aos subúrbios da capital, e Ling arranjou uma estalagem onde Wang-Fô pudesse passar a noite. De madrugada, ressoaram pesados passos nos corredores, e atrás deles ordens gritadas numa língua bárbara. Ling estremeceu, lembrando-se de que na véspera roubara um bolo para a refeição do mestre. 
Os soldados entraram com lanternas. Amparado pelo discípulo, Wang-Fô seguiu-os cambaleando através das estradas aos altos e baixos. 
Chegaram à entrada do palácio imperial(...) Um escravo soergueu um reposteiro, e o pequeno grupo entrou na sala onde reinava o Filho do Céu.
- Dragão Celeste, disse Wang-Fô prosternado, sou velho, sou pobre, sou fraco. Que mal é que eu te fiz? Ataram as minhas mãos, que nunca te causaram nenhum dano.
- Perguntas-me o que é que me fizeste, velho Wang-Fô? Vou dizer-to. O meu pai reuniu uma colecção de pinturas tuas no fundo do palácio, e foi nessas imensas salas que eu fui criado, velho Wang-Fô, porque não me deixavam sair, com medo de que ver os infelizes me afligisse o espírito ou agitasse o coração. De noite, quando não conseguia dormir, ficava a olhar para os teus quadros, e, durante dez anos, não houve uma só noite em que eu os não tenha contemplado. Mentiste-me, Wang-Fô, velho aldrabão: o reino de Han não é o mais maravilhoso dos reinos e não sou eu o Imperador. O único império onde vale a pena reinar é aquele onde tu entras, velho Wang, pelo caminho das Mil Curvas e das Dez Mil Cores. 

Marguerite Yourcenar (trad. de Luís Miguel Nava)
(ilustração de Georges Lemoine)
https://www.youtube.com/watch?v=wbe_19I0vhs

sexta-feira, 16 de março de 2018

Bandolim


MODUS OPERANDI
Nunca consegui escrever nada com projectos, planos, programas, esquemas, prazos. Grão a grão, verso a verso, enche a galinha o papo. Pôr o carro à frente dos bois. Assim é que funcionou para mim.

AULAS DE LITERATURA
Conheci uma professora catedrática estúpida que dava aulas sobre Os Lusíadas. Criticou-me por andar a ler A Flora dos Lusíadas do Conde de Ficalho. Disse-me: " O Conde de Ficalho não era um crítico literário." O problema de muitos literatos que falam de flores e de frutos, porque os poemas falam de flores e de frutos, é que não sabem nada de botânica. Não sabem nada de nada, muito menos de literatura.

O MEU BAIRRO
Comprei um bocado de melancia no lugar. Na rua, um desconhecido aproximou-se de mim e disse-me: "Agora ia uma talhada de melancia." Fez um verso. O meu bairro é um oásis. Só acredito no Portugal das cantigas, rapazes e raparigas."

Tenho de acabar de escrever este livro. Assim é a escrita infinita. Gostava que este livro fosse uma bomba de balas. Balas em brasileiro, claro. Balas são rebuçados.

Adília Lopes
(Ilustração de Luís Manuel Gaspar)
https://www.youtube.com/watch?v=I5QuNXdC9Do

sábado, 3 de março de 2018

Carta de Florbela Espanca


Meu querido irmão

Certamente te irá surpreender e penalizar a minha carta, mas entendo que é melhor dizer-te eu própria tudo o que há de novidade, em vez de deixar que aos teus ouvidos cheguem malevolências que te podem dar de mim uma ideia errada e injusta.
Eu deixei que tivesses da minha vida uma certeza de felicidade que ela de forma alguma possuía, nunca me ouviste uma queixa, nunca ninguém me viu uma lágrima, e no entanto a minha vida de há dois anos foi um calvário que me dá direito a ter razão e a não me envergonhar de mim.
Sofri todas as humilhações, suportei todas as brutalidades e grosserias, resignei-me a viver no maior dos abandonos morais, na mais fria das indiferenças, mas um dia chegou em que eu me lembrei da vida que passava, que a minha bela e ardente mocidade se apagava, que eu estava a transformar-me na mais vulgar das mulheres, e por orgulho, e mais ainda por dignidade, olhei de frente, sem cobardias nem fraquezas, o que aquele homem estava a fazer da minha vida, e resolvi liquidar tudo simplesmente, sem um remorso, sem a mais pequena mágoa.
Estou a divorciar-me e para me casar novamente, se a lei mo permitir, ou para viver assim, se a moralidade do Código o exigir. Dois anos lutei em vão para fugir a um amor que estava a encher-me toda, e este que encontrei agora orgulho-me dele pois é um ser único, como eu esperava encontrar, enfim, na vida. Tudo quanto me digas não é a décima parte do que eu me tenho dito.
Pensei na sociedade, pensei na família, nos amigos, e principalmente em ti, mas que queres? Eu não podia sacrificar-me a isso tudo que é muito, mas que nada é comparado a isto que eu sinto e que eu antes queria morrer do que perder. Por isso não me digas nada, para quê?
Pensa de mim o que quiseres, que eu estou disposta a aceitar tudo contanto que uns olhos me vejam sempre a melhor, a única entre todas as outras.
Que importa o resto? Para ti serei sempre a mesma, a irmã muito amiga de quem podes dispor em toda a minha vida; para os outros morri; que me enterrem em paz, que não pensem mais em mim e é tudo o que eu desejo.
Gostava de saber de ti, mas se tu não quiseres mais lembrar-te que eu existo, adeus até um dia que tu queiras, pois serei sempre a mesma,

a tua Bela
29 de Dezembro de 1923
https://www.youtube.com/watch?v=qIhme8AY8Dk