Ling, a troco das lições, tinha com ele todos os cuidados
que um discípulo deve ter com o mestre. Massajava à noite os pés cansados do velho, e de manhã
levantava-se muito cedo para ir procurar nas cercanias uma paisagem que o mestre
gostasse de pintar.
Uma tarde, ao pôr do sol, chegaram aos subúrbios da capital,
e Ling arranjou uma estalagem onde Wang-Fô pudesse passar a noite. De
madrugada, ressoaram pesados passos nos corredores, e atrás deles ordens
gritadas numa língua bárbara. Ling estremeceu, lembrando-se de que na véspera
roubara um bolo para a refeição do mestre.
Os soldados entraram com lanternas. Amparado pelo discípulo, Wang-Fô seguiu-os cambaleando
através das estradas aos altos e baixos.
Chegaram à entrada do palácio imperial(...) Um escravo soergueu um reposteiro, e o pequeno grupo entrou na
sala onde reinava o Filho do Céu.
- Dragão Celeste, disse Wang-Fô prosternado, sou velho, sou
pobre, sou fraco. Que mal é que eu te fiz? Ataram
as minhas mãos, que nunca te causaram nenhum dano.
- Perguntas-me o que é que me fizeste, velho Wang-Fô? Vou dizer-to. O meu pai reuniu uma colecção de pinturas tuas no fundo do
palácio, e foi nessas imensas salas que eu fui criado, velho Wang-Fô, porque
não me deixavam sair, com medo de que ver os infelizes me afligisse o espírito
ou agitasse o coração. De noite, quando não conseguia dormir, ficava a
olhar para os teus quadros, e, durante dez anos, não houve uma só noite em que
eu os não tenha contemplado. Mentiste-me, Wang-Fô, velho aldrabão: o
reino de Han não é o mais maravilhoso dos reinos e não sou eu o Imperador. O
único império onde vale a pena reinar é aquele onde tu entras, velho Wang, pelo
caminho das Mil Curvas e das Dez Mil Cores.
Marguerite Yourcenar (trad. de Luís Miguel Nava)
(ilustração de Georges Lemoine)
https://www.youtube.com/watch?v=wbe_19I0vhs
Marguerite Yourcenar (trad. de Luís Miguel Nava)
(ilustração de Georges Lemoine)
https://www.youtube.com/watch?v=wbe_19I0vhs