quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Uma questão de tempo


Do outro lado da casa, as crianças brincam com o tempo
que corre para que elas não brinquem com ele. Na casa
ao lado, um cão vê o tempo passar e ladra-lhe
para ele fugir como se fosse um ladrão. Na rua, o mendigo
pede a toda a gente a esmola de um tempo, e toda
a gente diz que não tem tempo para lhe dar. No café, peço
uma chávena de tempo, curto e bem forte
porque não tenho tempo para dormir, mas
a meu lado há quem peça uma chávena bem cheia
de tempo para que o tempo demore a beber. Há
quem corra por falta de tempo, e o tempo vai
atrás dele para o apanhar. No metro, a rapariga
atravessa o cais, devagar, como se tivesse mais tempo
do que todos os que contam o tempo para
não lhes descontarem no tempo. E quando me perguntam
se tenho tempo, olho para o relógio, como se ele
estivesse cheio de tempo, e peço que tirem de dentro
dele todo o tempo, e que o esvaziem até ao último
segundo, para eu ficar com tempo para
ver quanto tempo passou.

Nuno Júdice
(pintura de Álvaro Lapa)
https://www.youtube.com/watch?v=HQap2igIhxA


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