segunda-feira, 31 de dezembro de 2018
Sísifo
Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem,não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.
Miguel Torga
(arte de Zhang-Kechun)
domingo, 23 de dezembro de 2018
Natividade
nasceu o menino.
Brilhai até que traga a madrugada
sua luz de copo azul,
manhã de frio cristal.
Os anjos suspendem o canto
voam pelo rombo da telha alta da
fábrica.
Já entram os primeiros pastores.
No fogareiro de barro
São José aquece a faixa
que vai sentir o indefeso menino.
A cesta dos ovos é o presente
perfeito
desenhado pelas aves.
Brilhai luz do meio-dia
como se descessem de deus
raios azuis de incenso.
João Miguel Fernandes Jorge
( retábulo do Paraíso, atrib. a Gregório Lopes)
https://www.youtube.com/watch?v=8j6MAFUoOTg
quarta-feira, 12 de dezembro de 2018
Tartaruguinhas
Ira sempre esperou o dia em que as tartarugas-rosa vinham do mar. Quando o calor subia, tudo ficava de olho, à coca, predadores alados, marinhos, humanos, na expectativa dos ovos. Então o dia chegava e elas emergiam das águas aos milhares, gigantes de meia tonelada, dois metros de comprimento, trepavam pela areia com as suas patas nadadeiras, as suas cabeças de milhões de anos, cada uma escolhia um lugar para escavar o buraco, enterrava dezenas e dezenas de ovos, cobria-os e voltava ao mar.
A primeira vez que viu isto, Ira perguntou à avó se eram todas mães, ou os pais também tinham ovos. A avó disse que não, que os pais tartaruga nadam pelos oceanos toda a vida, que é lá que põem a sua semente nas mães, e nunca voltam a pisar a praia onde nasceram. Mas daí a lua-e-meia, explicou, ele poderia ver os bebés tartaruga, machos e fêmeas. Ira fez as contas e começou a ir à praia. Até que certa noite aconteceu, milhares de bebés cor-de-rosa começaram a brotar dos buracos, sacudindo a areia, e imediatamente, freneticamente correram na direcção da água. O luar iluminava aquela maratona épica, aqueles metros em que tudo rivalizava para lhes roubar a vida. Ira só pensava que tinham nascido há segundos, sozinhos no mundo, sem pai nem mãe, e sabiam para onde ir, o que fazer. Que segredo era esse com que já nasciam?
Anos depois, na cidade aprendeu que só sobrevive um em cada cem bebés-tartaruga. Quando chegam a adultos, fecundam com outros uma mesma fêmea, que no grande calor voltará a Alendabar para enterrar os seus ovos, recomeçando tudo. E se a temperatura da areia for acima de trinta graus, o ovo será fêmea.
Alexandra Lucas Coelho
https://www.youtube.com/watch?v=1oiximotlME
Alexandra Lucas Coelho
https://www.youtube.com/watch?v=1oiximotlME
segunda-feira, 3 de dezembro de 2018
Homero
Escrever o poema como um boi lavra o campo
Sem que tropece no metro o pensamento
Sem que nada seja reduzido ou exilado
Sem que nada separe o homem do vivido
Sophia de Mello Breyner Andresen
(pintura de Miró)
https://www.youtube.com/watch?v=55yJJiwrmAw
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