domingo, 28 de junho de 2020

Natureza


Em forma sabor e duração
em viva densidade harmoniosa
em que o silêncio perpassa na brancura
o fruto melodioso da tranquila hora
cintila em plenitude de presença
sem promessas sem pertencer a ninguém
e em redonda leveza todo em si se consuma
Não se dirige a alguém não requer palavras
não tem mistério algum e é indecifrável
na sua lenta nudez na sua límpida luz
Na sua vaga pureza uma antiguidade murmura
e é a surpresa de uma primeira vez
que se demora como um barco harmonioso

António Ramos Rosa
Foto - Portugal, 25/06/2020
https://www.youtube.com/watch?v=AuDh36azgnU

terça-feira, 9 de junho de 2020

Visões de artistas






Subitamente - que visão de artista! -  
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!

E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas - os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão que me lembrou um ventre.

                                                                               (extracto de Num Bairro Moderno)


Poema de Cesário Verde (1855-1886)
Fotografias de Edward Weston (1886-1958)
https://www.youtube.com/watch?v=eFd5h0JRdKg

terça-feira, 2 de junho de 2020

As mais belas coisas do mundo


Nesse tempo, o meu avô perguntou-me quais seriam as coisas mais belas do mundo. Eu não soube o que dizer. Pensei que poderiam ser o fim do sol, o mar, a rebentação no inverno, a muita chuva, o comportamento dos cristais, a cara das mulheres, o circo, os cães e os lobos, as casas com chaminés. Ele sorriu e quis saber se não haviam de ser a amizade, o amor, a honestidade e a generosidade, o ser-se fiel, educado, o ter-se respeito por cada pessoa. Ponderou se o mais belo do mundo não seria fazer-se o que se sabe e pode para que a vida de todos seja melhor.
Pasmei diante do seu conceito de beleza.
Ele incluía os modos de ser, esses ingredientes complexos que compõem a receita do carácter ou da personalidade, a maneira um pouco inexplicável como somos e sentimos tudo.
Convenci-me que as coisas mais belas do mundo se punham como os mais profundos e urgentes mistérios. Eram grandemente invisíveis e funcionavam por sinais dúbios que nos enganavam, devido à vergonha ou à matreirice. O que sentem as pessoas é quase sempre mascarado. Deve ser como colocarem um pano sobre a beleza, para que não se suje ou não se roube, para que não se gaste ou não se canse.
A beleza, compreendi, é substancialmente o pensamento, aquilo que inteligentemente aprendemos a pensar. A força do pensamento haverá de criar coisas incríveis, científicas, intuitivas, maravilhosas, profundas, necessárias, movedoras, salvadoras, deslumbrantes ou amigas. Pensar é como fazer.
Para a beleza é imperioso acreditar. Quem não acredita não está preparado para ser melhor do que já é. A minha mãe disse que eu virei um sonhador. Para mudar o mundo, sei bem, é preciso sonhar acordado. Apenas os que desistiram guardam o sonho para o tempo de dormir.