A última vez que vi António Dacosta foi em sonhos, nos Açores. Ele estava a sonhar o seu sonho e eu entrei nele como visitante. Posso entrar no seu sonho, Mestre?, perguntei. Ele levantou a tela do quadro que estava a pintar e respondeu: entre lá no meu quadro, faça favor...
Detivemo-nos numa praia. É uma praia de uma minha ilha, disse Dacosta, olhe que bonita que é.
A areia era fina e dourada, salpicada de crustáceos e moluscos, com pequenas concreções azuis que pareciam vindas de outro planeta. Na praia havia uma barraca de madeira pintada de branco e na porta estava escrito: Restaurante. Entrámos e Dacosta cumprimentou o dono.Era um hospedeiro bizarro, com duas asas azuis nas costas e o cabelo vermelho. Esta é a minha Caça ao Anjo, disse Dacosta, é assim que se chama este restaurante, e este é o meu anjo da guarda, o anjo que cuida do meu estômago e da minha alma.
O hospedeiro fez uma vénia, sacudiu as asas e perguntou-me: gosta de anjos de cabelo vermelho?
Gosto, respondi, nunca tinha visto nenhum, mas aqui nos Açores há seres muito bizarros, você não virá por acaso de outro planeta?
Venho de Saturno, respondeu o anjo, toda a gente pensa que em Saturno somos todos saturninos e melancólicos, e pelo contrário temos asas azuis e cabelo vermelho, mas não se trata do Saturno que você julga, é o Saturno que Dacosta sonha...
Dacosta encheu o meu copo de vinho e disse: há um Saturno em que penso há anos, é a ideia de Saturno, mas não é o planeta, é o Deus que preside ao nascimento dos deuses, e este Saturno perseguiu-me sempre, e a ele tinha-o sempre no coração e na alma, porque ouvia a sua voz a dizer-me que um dia haveria de explodir em mim o nascimento dos deuses, e nesse dia haveria de ser feliz.
E você o que é que respondia ao seu Saturno?
Eu ficava calado, respondeu Dacosta, e continuava à espera.
E depois um dia, os deuses começaram a nascer, normalmente essas coisas sucedem na Primavera mas aconteceu no Outono, comecei a sentir-me esquisito, a minha alma inchou como incha o mar no equinócio, meti-me na cama, fui bebendo uma tisana aguardando o momento de dar à luz. E a certa altura levantei-me, pus-me em frente do cavalete, peguei nos pincéis e nas tintas, tracei duas linhas na tela mas fi-las curvas como esguichos de de água a sair de uma fonte, porque percebi que aquela era a minha geometria. E os deuses chegaram por si próprios, eu comecei a pintar e sentia-me feliz. E pintei vários quadros, num êxtase que não saberia descrever. Aquele foi o dia triunfal da minha vida e não poderei ter outro igual.
O anjo veio à nossa mesa com uma grande travessa. Era um prato de aspecto insólito e magnífico. Perguntei ao anjo que comida era aquela. É uma comida que antigamente se cozinhava aqui, na desaparecida Atlântida, e que hoje quis cozinhar para vocês.
Antonio Tabucchi