sábado, 31 de outubro de 2020

Os números


este é o livro da minha descendência:
adelino gerou armindo que gerou adão que 
gerou tiago que gerou três. dois deles correm agora pela sala em
perseguições alternadas. o terceiro cresce sem que o 
vejamos ainda. somos cada vez mais, embora insuficientes
para substituir os mortos que coleccionamos em álbuns de 
família, e por motivos práticos vivemos quase isolados na nossa
felicidade doméstica, um sentimento mal recebido pela crítica.
durante a infância ninguém morreu. os corpos 
eram retirados do olhar das crianças de forma subtil e
eficaz. chegou por fim o momento de consultar
a conta-corrente, de avaliar os ganhos e as perdas.
um nome por cada nome, numa família em que o
passou é quase tão desconhecido como o futuro.
fomos trazidos até aqui por uma paixão
quase constante entre os sexos, ao longo dos séculos.
e agora, na idade adulta,é a cada dia
que nos vamos aproximando do passado.
pode ter sido muito diferente em outras épocas, mas
hoje é saturno que é devorado pelos filhos enquanto vê
televisão, numa tarde de sábado.

Tiago Araújo

sábado, 17 de outubro de 2020

Redacção da Guidinha


Ora cá estou eu

Ora cá estou eu Guidinha em tudo menos nos papéis porque nos papéis sou Margarida do Rosário Peixoto para falar dos homens pais que são os homens piores que eu conheço são tão ruins que eu tenho pena de ter Mãe e Pai antes queria ter duas Mães eles são tão ruins que até fingem que a gente não existe quando eu ando na escada a escrever os nomes dos namorados das vizinhas nas paredes sim que não é segredo nenhum toda a gente sabe que a D. Mécia do segundo andar embeiçada pelo careca da sapataria aparece sempre alguém que pergunta "pst ó menina quem são os seus pais?" o que eu queria dizer é que ninguém me pergunta "pst ó menina quem são as suas Mães?" por aqui já se vê como eles são tão maus que fazem de conta que mandaram vir a gente de Paris sozinhos eu também vingo-me neles que é uma coisa doida quando me perguntam "pst ó menina quem são os seus pais" e sei que é para irem lá com queixinhas disto e daquilo digo sempre que são dois muito finos que vivem do lado de lá da rua e que pintam os cabelos e os olhos e que não têm mulheres e quando lá vão com as queixinhas é um gozo ouvir o loiraças todo contente a gritar para o outro que está na cozinha "ó filho então não queres lá saber está aqui uma mulherzinha a dizer que temos filhos não achas que tem graça" o que é preciso é chatear os homens o meu pai é do piorio levanta-se e vai para a repartição volta janta e vai para o café e quando está em casa é só para atacar só para atacar "Não sei que fazes ao dinheiro que te dou o Costa dá menos em casa e come carne todos os dias" 

Luís Sttau Monteiro
Ilustração "Mafalda"de Quino

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Mestre




Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,
Alma abstracta e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...

Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu coração não aprendeu nada.
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.


Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Foto: Lisboa, na Praça da Figueira