sábado, 31 de outubro de 2020

Os números


este é o livro da minha descendência:
adelino gerou armindo que gerou adão que 
gerou tiago que gerou três. dois deles correm agora pela sala em
perseguições alternadas. o terceiro cresce sem que o 
vejamos ainda. somos cada vez mais, embora insuficientes
para substituir os mortos que coleccionamos em álbuns de 
família, e por motivos práticos vivemos quase isolados na nossa
felicidade doméstica, um sentimento mal recebido pela crítica.
durante a infância ninguém morreu. os corpos 
eram retirados do olhar das crianças de forma subtil e
eficaz. chegou por fim o momento de consultar
a conta-corrente, de avaliar os ganhos e as perdas.
um nome por cada nome, numa família em que o
passou é quase tão desconhecido como o futuro.
fomos trazidos até aqui por uma paixão
quase constante entre os sexos, ao longo dos séculos.
e agora, na idade adulta,é a cada dia
que nos vamos aproximando do passado.
pode ter sido muito diferente em outras épocas, mas
hoje é saturno que é devorado pelos filhos enquanto vê
televisão, numa tarde de sábado.

Tiago Araújo

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