sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Cruzeiro Seixas

 


Levado pelas águas

sem jamais encontrar o mar

ferozmente atacado por uma flor

olho os dinossauros idilicamente

pastando nas margens. Que vejo eu?

Já não resta fóssil sobre fóssil

e só os náufragos ainda repetem os erros de ortografia

de continente em continente.

As plumagens agitadas das palavras são estandartes

atravessando o espaço e o sono

livres em toda a sua estranhíssima glória.

São os peixes esverdeados

que escondem sob as roupagens os labirintos

e as maquinarias prontas a investir

contra o paraíso.

A experiência impregnou as pedras da sua voz rouca

e as coisas são como um tríptico aberto

mostrando aos canibais perplexos

os nós mais secretos

daquele marinheiro alado.

Desfia-se já o fio que há séculos nos mantém.

 

Tenho frio

e imploro que me cubram com o dilúvio

ao som de trombetas exacerbadas:

que me cubram a mim e ao eco,

e à memória de tudo isto.

Estou ainda aqui,

e vejo

como um cego vê o mar.


Cruzeiro Seixas

(texto e gravura)

https://www.youtube.com/watch?v=XGiEh774GBg

sábado, 14 de novembro de 2020

Aniversários

 


As abelhas não fazem anos.
Nenhuma viveu um ano
para o poder fazer.

Com um dia de vida
qualquer abelha vai trabalhar.
Com dois já pode namorar
e com cinco casa e tem filhos.
Com vinte dias de vida
uma abelha está acabada:
é uma velha.

Os anões são tão pequeninos
que não fazem anos.
Fazem aninhos.
Os gigantes são tão grandalhões
que não fazem anos.
Fazem anões.

Os anos que fazemos
também nos fazem a nós.
Os anos que fizemos nos fizeram.
Os anos que faremos nos farão.
É de anos que somos feitos,
de breve e misterioso tempo.
Em nós estão os anos que já fomos.
Esses anos, que fizemos, somos nós,
do cimo da cabeça à ponta dos pés.

Álvaro Magalhães

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Escrever poemas



Escrever poemas é bom, pode ser. Comecei a escrever poemas aos 10, 11 anos. Voltava da escola no segundo andar do autocarro da Carris e apetecia-me escrever sobre o que via. Os sinais de trânsito eram chupa-chupas, os semáforos tinham cores de rebuçado. Nunca gostei de chupa-chupas nem de rebuçados mas achava que ficava bonito numa redacção escolar escrever estas coisas. Dava-me prazer escrever assim e achava que estava certo o que escrevia. As professoras gostavam muito das minhas redacções, tinha muito sucesso.
Comecei a ouvir a Musa quando ia fazer 23 anos. Antes não ouvia a Musa. Eu sei que falar assim parece banha de cobra. Mas não é. Já contei isto muitas vezes. A minha gata tinha desaparecido, eu estava muito triste, aflita. De repente na minha cabeça estava um poema sobre a gata. Peguei na caneta e na esferográfica e escrevi. Ouvir a Musa não é só ter prazer em escrever, ter ideias ou imagens como eu tinha aos 11 anos. É aparecer o texto na cabeça vindo não sei de onde. E a minha gata apareceu. Não são os textos que me interessam, quero lá saber da Musa. Quero é a gata, o afecto, a vida, a gata.
Ouvir a Musa é desgastante, um frenesi. Volto a escrever como aos 11 anos, quando andava no segundo andar do autocarro da Carris. Tenho 60 anos adolescentes.
                                                                                  7-VI-2020

Adília Lopes
Pintura de Pierre-Auguste Renoir