O que vou contar, ainda não aconteceu. Mas acontecerá, quando não sei, talvez daqui por quinhentos ou mil anos, precisamente (arrisco a profecia) em 2968. Qual venha ser o primeiro animal a endoidecer de cólera, não o diria mesmo que soubesse, porque o mais certo era acabarem-lhe já com a espécie, na mira de evitar a catástrofe.
Em todo o caso, alguma coisa me diz que a primeira rebelião virá de um animal pacífico. Talvez o cão, talvez a calhandra. Ou a rola, hoje tão modesta e conformada. Não sei, não sei. Agora mesmo (vá lá explicar porque) tive a certeza de que será o potro. Vi-o no meio de um prado, com erva até os joelhos, o sol a acender-lhe fogachos no pelo sedoso - e de repente erguer-se nas patas traseiras, esgrimir os cascos, de crina revolta e beiços arreganhados de furor. E se aqui deixo, afinal, esta revelação, é só porque sei que, no fundo, ninguém vai acreditar-me.
Será o primeiro sinal. O potro sairá do prado verde e meterá as estradas dos homens. Por onde passa, levanta o motim, desperta a cólera, bate com as patas nos troncos das árvores e nas tocas sombrias. Ergue a cabeça transfigurada para as nuvens e chama as aves do céu. Por todo o mundo começa a mover-se o grande exército dos animais.
Ao princípio, os homens ficam surpreendidos. Depois, o interesse científico leva-os a sobrevoar de helicóptero as manadas e rebanhos, os insetos alados e os bandos de pássaros, os intermináveis cortejos de lagartas e formigas. Tiram fotografias e escrevem relatórios e reportagens. Colhem aqui e além um animal crispado, estudam-lhe o comportamento, vivissectam e dissecam - e nada encontram, porque não há vírus da ira nem micróbio da fúria.
Quando os animais se tornam incômodos, os homens põem em uso a panóplia doméstica dos pequenos conflitos: armas de caça, inseticidas, redes, venenos, armadilhas. Mas os animais são inúmeros. Surgem de todos os lados e cercam as cidades…
José Saramago (texto com supressões)
Pintura de Júlio Pomar
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