terça-feira, 29 de junho de 2021

A uma cerejeira em flor

Acordar: ser na manhã de abril

a brancura desta cerejeira, 

arder das folhas à raiz,

dar versos ou florir desta maneira.


Abrir os braços, acolher nos ramos

o vento, a luz, ou o que quer que seja:

sentir o tempo, fibra a fibra, 

a tecer o coração de uma cereja.


Eugénio de Andrade
Pintura de van Gogh



domingo, 20 de junho de 2021

Curar a infância

Quando me mandaram para a escola, tão atrás da nossa casa, tão perto, fugi para os campos e deambulei até me parecer pelo sol que teriam passado as horas da classe.
Terá sido ao faltar a quarta manhã que foram perguntar à minha irmã Flor se eu estaria doente.
Quando eu, orientado à sorte pelo sol, cheguei a casa, confessei que me sentava nos campos abaixo da Cavada. Ia sozinho. Punha-me encostado ao muro, numa pedra que lá havia parecida a um banco de bom tamanho, e abaixava a cabeça para não ser visto acima das giestas já secas. Reiterei que sabia tudo, eu sabia tudo. Comecei a chorar desalmado. Então, a minha mãe perguntou se eu não gostaria de aprender a guardar as coisas de dentro da cabeça. Ainda hoje me fascina o modo como ela entendeu o meu mundo. Pensei primeiro que teríamos tripas na cabeça, peles e órgãos feios como havia nos bichos que eram cozinhados. Depois, ela disse: as coisas de pensar. Tu tens de aprender a guardar as coisas de pensar. Se souberes escrever, as folhas de papel serão caixinhas onde podes arrumar com palavras tudo aquilo que não queres esquecer. E as folhas de papel, tão planas e aparentemente vazias, adquiriam fundura, uma imensidão inesperada, porque, se eu soubesse escrever pirilampo, para sempre um pirilampo estaria ali, talvez até de cauda acesa, à minha espera. Meu. Sem ir embora. Eu disse: é a minha palavra preferida. A minha mãe respondeu: eu sei. Aceitei ir à escola porque aceitei ser torturado em troca da ciência deslumbrante de aprender a guardar a fortuna das palavras.

Valter Hugo Mãe
Pintura de Eduardo Berliner




sexta-feira, 4 de junho de 2021

Quarentena

                         

                      Estar em casa

                      estar a estar

                      dias e dias

                    

                         Adília Lopes    26-IV-2020    11h14

                        Arte de Fernando Bento

                       https://www.youtube.com/watch?v=bNOPHw6fzok

 

                         

                         

quinta-feira, 3 de junho de 2021

A Rosalia de Castro


Divina Rosalía! Ó santa protectora
da terra da Galiza, a nossa terra Mãe!
Onde derrama um oiro triste a luz da aurora,
onde a névoa do mar descorre e encobre o Além,
onde há almas de Deus, no mundo prisioneiras, 
onde há rezas e sol, à noite, nas lareiras...

Divina! Ó virgem da tristeza!
Coração de mulher que abrange a Natureza
e num canto imortal a converteu.
Coração de mulher aberto à luz do céu
co'as lágrimas sem fim dos desgraçados
saturna multidão de povos emigrados...

Divina Rosalía.
Senhora da Saudade e da Melancolia...
Alma de Deus despida, exposta à chuva e ao vento
Alma, só alma, num deslumbramento
Alma, só alma, a errar na solidão
Alma, só alma, eterna aparição.

Aparição da dor, aparição do amor.
Alma, só alma, apenas alma em flor.

Teixeira de Pascoaes
Pintura de Henrique Medina