Quando me mandaram para a escola, tão atrás da nossa casa, tão perto, fugi para os campos e deambulei até me parecer pelo sol que teriam passado as horas da classe.
Terá sido ao faltar a quarta manhã que foram perguntar à minha irmã Flor se eu estaria doente.
Quando eu, orientado à sorte pelo sol, cheguei a casa, confessei que me sentava nos campos abaixo da Cavada. Ia sozinho. Punha-me encostado ao muro, numa pedra que lá havia parecida a um banco de bom tamanho, e abaixava a cabeça para não ser visto acima das giestas já secas. Reiterei que sabia tudo, eu sabia tudo. Comecei a chorar desalmado. Então, a minha mãe perguntou se eu não gostaria de aprender a guardar as coisas de dentro da cabeça. Ainda hoje me fascina o modo como ela entendeu o meu mundo. Pensei primeiro que teríamos tripas na cabeça, peles e órgãos feios como havia nos bichos que eram cozinhados. Depois, ela disse: as coisas de pensar. Tu tens de aprender a guardar as coisas de pensar. Se souberes escrever, as folhas de papel serão caixinhas onde podes arrumar com palavras tudo aquilo que não queres esquecer. E as folhas de papel, tão planas e aparentemente vazias, adquiriam fundura, uma imensidão inesperada, porque, se eu soubesse escrever pirilampo, para sempre um pirilampo estaria ali, talvez até de cauda acesa, à minha espera. Meu. Sem ir embora. Eu disse: é a minha palavra preferida. A minha mãe respondeu: eu sei. Aceitei ir à escola porque aceitei ser torturado em troca da ciência deslumbrante de aprender a guardar a fortuna das palavras.
Valter Hugo Mãe
Pintura de Eduardo Berliner
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