sábado, 27 de novembro de 2021

Manguezal

Nos mangues do Lobito durante a maré baixa

caminhávamos horas ao longo dos ramais

indiferentes ao solo instável

ao labirinto de raízes, às aéreas transições


Ficávamos assim talvez mais próximos

da verdade sem aquela sensação

de que a haveríamos de perder

e quando atravessávamos a fronteira das águas

galhofeiros e urrando de entusiasmo

parecia-nos estranho que houvesse apenas uma palavra

para designar o mundo


Nenhuma ignomínia ou veneno

trepava os muros desses domínios

a nossa existência era uma coisa selvagem e simples

sentindo-se maravilhosamente


Só quando surpreendíamos os flamingos

prontos para os seus voos

semelhantes a uma armada

de invisíveis jangadas

compreendíamos ser testemunhas de um segredo

que não estava destinado ao olhar dos homens


José Tolentino Mendonça

Foto de manguezal, Lobito, Angola

https://www.youtube.com/watch?v=G2jSbjI9Ll4

sábado, 20 de novembro de 2021

Paisagem

O tempo passou, transformou tudo em gelo.

Sob o gelo, o futuro bulia.

Se caísses lá dentro, morrias.

 

Era um tempo

de espera, de acção suspensa.

 

Eu vivia no presente, que era

a parte do futuro que podíamos ver.

O passado pairava sobre a minha cabeça,

como o sol e a lua, visível mas inalcançável.

 

Era um tempo

governado por contradições, como

Não sentia nada e

tinha medo.

 

O inverno esvaziou as árvores, voltou a enchê-las de neve.

Como eu nada sentisse, a neve caiu, o lago gelou.

Como se eu tivesse medo, permaneci imóvel;

o meu bafo era branco, uma descrição do silêncio.

 

O tempo passou, e uma parte dele tornou-se isto.

E outra parte evaporou-se simplesmente;

podíamos vê-la a pairar sobre as árvores brancas,

formava partículas de gelo.

 

Esperas a vida inteira pelo momento oportuno.

Depois o momento oportuno

revela-se acção consumada.

 

Eu via mover-se o passado, uma fila de nuvens a avançar

da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,

consoante o vento. Por vezes

 

não havia vento. As nuvens pareciam

ficar onde estavam,

como uma pintura do mar, mais imóveis do que reais.

 

Por vezes o lago era um lençol de vidro.

Sob o vidro, o futuro murmurava,

modesto, convidativo:

tinhas de te concentrar para o não ouvires.

 

O tempo passou; chegaste a ver parte dele.

Os anos que levou eram anos de inverno;

ninguém lhes sentiria a falta. Por vezes

 

não havia nuvens, como se

as fontes do passado tivessem desaparecido. O mundo

 

perdera a cor, como um negativo; a luz atravessava-o

de lado a lado. Depois

a imagem apagava-se.

 

Por cima do mundo

só havia azul, azul em toda a parte.

 

Louise Glück (tradução de Rui Pires Cabral)

Pintura de Van Gogh

https://www.youtube.com/watch?v=xnHEQhno7Y8


quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Figuras



A velhice é um vento que nos toma
no seu halo feliz de ensombramento.
E em nós depõe do que se deu à obra
somente o modo de não sentir o tempo,
senão no ritmo interior de a sombra
passar à transparência do momento.
Mas um momento de que baniram horas
o hábito e o jeito de estar vendo
para muito mais longe. Para de onde a obra
surde. E a velhice nos ilumina o vento.

Fernando Echevarria
Arte de Armanda Passos

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Palheiros de Mira


Tudo aqui é pobre e humilde mas não grosseiro. Os homens trigueiros, secos e fortes e as mulheres bem lançadas. Mesmo as feias têm um ar de distinção. A família é sagrada. O contacto com a terra obriga o homem a olhar para o chão, o convívio com o mar obriga-o a levantar a cabeça. Quando saem do barco e o encalham os pescadores não fazem mais nada - deitam-se na areia. O resto compete à mulher: é ela que lava as redes e o peixe, que o salga e carrega e que faz a lavoura da Barrinha.
Como vive esta gente? Vive com simplicidade nos palheiros, casa ideal para pescadores ou para um velho filósofo como eu. É construída sobre espeques na areia, com tábuas de pinho e um forro por dentro aplainado. Duram tanto ou mais qua a vida; cheiram que consolam, quando novas,  a resina, a árvore descascada e a monte; ressoam como um velho búzio e são leves, agasalhadas, transparentes. Por fora escurecem logo, e envelhecendo caem para o lado ou para a frente; por dentro conservam uma frescura extraordinária, e quando se abre um a janela, abre-se para o infinito...

Raúl Brandão
Foto de Agosto de 1975