quinta-feira, 10 de março de 2022

A casa


A casa vem ao meu encontro.
Agora que está longe, vem ao meu encontro.
Nunca tinha vindo tanto ao meu encontro.

A casa: conglomerado de serventias
e confortos e, agora que está longe, 
uma massa indistinta de memórias:
choros e risos e ralhos
e a voz da Mãe cantando enquanto costurava.

A casa: estive nela com demora e rodeado
dos que amei. E o tempo parecia
não se escoar, estando na casa.

Mas a verdade é que escoou mesmo:
um dia a casa encolheu, deixámos de caber
nos escombros do que a casa tinha sido.

E cada qual em sua barca
partimos sobre as águas escaldantes
da ausência uns dos outros
a fundar outras colónias, a chamar por
outras mortes por afogamento.

Deixando para trás, sepultadas em pó,
memórias dos que morreram e, morrendo,
conheceram finalmente a eternidade
das coisas imóveis.

A. M. Pires Cabral
Gravura de Escher




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