terça-feira, 12 de abril de 2022

A Abóboda



(...) Assistiu o leitor à promessa que mestre Afonso Domingues fez a D. João I de que dentro de quatro meses lhe daria posto o remate na abóboda da casa capitular de Santa Maria da Vitória, e lembrado estará de como el-rei lhe prometera, também, mandar vir de Guimarães todos os oficiais portugueses que, despedidos da Batalha por mestre Ouguet, como menos habilidosos que os estrangeiros, haviam sido mandados para a obra de Santa Maria da Oliveira.
Este, resolvido, também, a cumprir o prometido, metera mãos à obra. O Capítulo foi desentulhado: aproveitaram-se as pedras da primeira edificação que era possível aproveitar, lavraram-se outras de novo, armaram-se os simples e, muito antes do dia aprazado, o fecho ou remate da abóboda repousava no seu lugar (...)
- Guarde-vos Deus, mestre Afonso Domingues! disse el-rei, vendo entrar o cego. - Aqui me tendes para ver acabada a feitura da mirífica abóboda do Capítulo de Santa Maria, cujos simples não quisestes tirar senão em minha presença.
 - Beijo-vo-las, senhor rei, pela mercê: dois votos fiz, se levasse a cabo esta feitura; era esse um deles...
- E o outro? - atalhou el-rei.
- O outro dir-vo-lo-ei em breve; mas por ora permiti que para mim o guarde.
Neste momento quatro forçosos obreiros chegaram à porta do Capítulo, trazendo sobre uma paviola uma grande pedra quadrada. Martim Vasques, que já lá estava, gritou ao cego arquitecto:
- Mui sabedor mestre Afonso, que quereis se faça do canto que para aqui mandastes trazer?
- Assentai-o bem debaixo do fecho da abóboda, no meio desse claro, que deixam os prumos centrais dos simples.
Os obreiros fizeram o que o arquitecto mandara; este então voltou-se para el-rei e disse:
- Senhor rei, é chegado o momento de vos declarar meu segundo voto. Pelo corpo e sangue do Redentor jurei que  assentado sobre a dura pedra, debaixo do fecho da abóboda, estaria sem comer nem beber durante três dias, desde o instante em que se tirassem os simples. De cumprir meu voto ninguém poderá mover-me. Se essa abóboda desabar, sepultar-me-á em suas ruínas: nem eu quisera encetar, depois de velho, uma vida desonrada e vergonhosa. Esta é a minha firme resolução.
- Esperai, esperai! - bradou el-rei. - Estais louco, dom cavaleiro? Quem, se vós morrerdes, continuará esta fábrica, tão formosa filha de vosso engenho?
- Mestre Ouguet - tornou o cego, parando. - Não sou tão vil que negue seu engenho e habilidade. Se a abóboda desabar segunda vez, ninguém no mundo é capaz de a fechar com uma só volta, e para a firmar sobre uma coluna erguida ao centro, mestre Ouguet o fará. Quanto ao resto do edifício, farei senhor rei que se prossiga meu desenho: é o que ora vos peço tão-somente.

Alexandre Herculano

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