domingo, 16 de outubro de 2022

À procura de si própria




 "Onde deixei a Mila?", pergunto-me, como se procurasse as chaves de casa. Terei ficado na Beira, em sessenta e sete, lendo um jornal em voz alta à sombra de um mamoeiro, ou serei aquele borrão de tinta na fotografia de uma barragem também em Moçambique? Serei as nódoas de água sobre a secretária do meu avô [português] Manuel; uma caneta na mala do avô [angolano] Castro; a pulga no colchão em São Gens? Encontrar uma pessoa pode ser sinal de que a procurámos. Parece-me todavia que "encontrar" não é um resultado previsto de "procurar" quando falamos de pessoas. Encontrar-me a mim é mais parecido com encontrara uma pulga quando se procurava um borrão; encontrar uma nódoa de água quando se procurava uma chave; encontrar uma caneta quando se procurava uma pessoa. O que se encontra reconfigura o que se procurava. A procura de uma origem e  de uma identidade não reconstitui a minha origem nem descobre a minha identidade. Uma pessoa apenas se encontra a si mesma por acaso.
"Onde deixei a Mila?" O tempo da procura coincide com o tempo da descoberta, exactamente como se percebesse o propósito do que escrevo no decurso de escrever. A pessoa que encontrei por acaso confunde-se com o resultado de uma procura apenas no sentido em que, se usarmos uma pá para desenterrar um baú, é possível que o baú encontrado esteja marcado pela pá que usámos. Tal conclusão mostra-me que apenas por acaso este é o meu cabelo. O que somos por escrito é tão diferente do que somos quanto uma nódoa de água é diferente de uma chave.

Djaimilia Pereira de Almeida


quarta-feira, 5 de outubro de 2022

As gavetas


 A gaveta é um poema 
                   um cuidadoso poema
sim                           Sim
                   um poema.

Guardar é uma coisa difícil
É por vezes um vício.

Eu aprendi a guardar
mas perdi tanta coisa que guardei
sem saber onde as metera
que errei longamente longe das minhas gavetas
longe de mim
longe das casas antigas
sem saber onde encontrar-me
sem poemas            sem mim.

Um dia
um dia longamente esperado
regressei.
À minha volta acenderam-se os objectos
iluminou-se o rosto                  das coisas
abriu-se o onde       as conheci e guardei.

As gavetas são os arquivos onde fechei o sol
onde semeei os instantes já vividos
as gavetas são os onde
                             onde se guardam esperas
mergulhadas
                    no murmúrio e no perfume
das eternas.

Não               não           os poemas não são
gavetas
mas sim                                               Sim
as gavetas são                                poemas.
                                                             Sim      
os arquivos                       dos poetas.


Salette Tavares (texto com supressões)
Pintura de Menez